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Givanildo-Giva M. da Silva

Educador, Indígena do contexto urbano, articulador da 1ª Conferência livre popular nacional de indigena do contexto urbano, idealizador da Tv Imbaú, organizador do livro Desmilitarização da Polícia e da Política: uma resposta que virá das ruas.

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A fabricação do desaparecimento: o Estado Brasileiro como máquina de apagamento étnico (refletindo sobre os dados do IBGE)

Para os povos indígenas, como os Guarani, ser diferente é natural, porque o diferente é quem completa o círculo; ou seja, a essência da existência é a diferença

Exposição de Ricardo Stuckert sobre os povos indígenas (Foto: Divulgação)

Antes de começar o texto, quero pedir desculpas aos diversos povos que compõem este território e pelo nome que lhe dão, pois cada povo tem um significado e interpretação diferentes para ele:

● Yvy Maraê’y - em Guarani, significa “terra sem males” ou “terra sagrada”.

● Nhandereko retã — também em Guarani, quer dizer “terra do nosso modo de ser” ou “território do nosso modo de vida”.

● Yvy Pindoráma — uma variação Guarani que junta o sentido de “terra das palmeiras” com “terra sagrada”.

● Wamarĩhö — “terra ancestral” - Xavante.

● A’yiká Pataxó — “nossa terra, nosso chão” - Pataxó.

● Omágua — que quer dizer “terra dos homens” - Tikuna ou Makita.

● Urihi — “a terra-floresta viva” - Yanomami.

● Yaathe Kahi — “nossa terra sagrada” - Fulni-ô.

● Bewóhé : “Brasil Tronco vermelho “ - Kariri

E a todos os outros que não pude alcançar, peço desculpas.

 “Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.”

Carlos Drummond de Andrade

Tentamos fugir da ideia de pluralidade fingindo uma pluralidade neste mundo moldado pelo pensamento judaico-cristão. Porém, o que temos acompanhado é uma visão limitada daqueles que invadiram este território, onde habitavam mais de mil povos, falantes de mais de mil línguas. Desde o início da invasão, os colonizadores utilizaram sua autorreferência para olhar para o outro, tentando moldar um mundo à sua imagem e semelhança, que espelhasse não apenas sua estética, mas também seu pensamento.

Não foi acidental que, ao longo de mais de cinco séculos, o genocídio tenha sido utilizado amplamente, não só contra os que estavam aqui, mas também contra os que foram sequestrados da África e trazidos para este território. E não, como se sabe fartamente, para "povoar" esta terra, mas para que, juntamente com os que já estavam aqui, se tornassem mão de obra escrava para enriquecer alguns homens brancos – como ocorre, em essência, até hoje.

Este mundo monocromático e unipolar foi se estabelecendo matando, apagando, roubando, estuprando e impondo seu pensamento: o pensamento do colonizador capitalista, para o qual a diferença não poderia existir, principalmente de pensamento. Essa possibilidade poderia e poderá fazer ruir as bases com as quais os invasores moldaram o entendimento da maioria. Mas, sobretudo, não deveriam existir os que aqui estavam. Portanto, uma prática permanente do Estado colono-capitalista foi apagar as identidades, declarando extintos os povos que não se curvaram a tal pensamento e que resistiram e resistem a esse mundo monocromático e unipolar.

Foi assim que armas como o genocídio, o estupro, a eugenia, o etnocídio e o epistemicídio tomaram forma através das Reformas Pombalinas, da Lei de Terras, da exclusão dos indígenas do Censo durante cem anos (1890-1991) e do controle permanente dos territórios e corpos indígenas. Essas ações impediram que as diferenças estéticas e de visão de mundo prosperassem, permitindo-se somente uma sociedade bicolor, que não expressava a gama de diversidade que é este território.

Essa visão foi moldada a partir de ações estruturantes no que ficou conhecido como República, que estabeleceu novos parâmetros para ler a sociedade, separando a racialização da etnicidade. Era como se os negros e as negras, vítimas de sequestros e das mesmas violências, estivessem em condição diferente da dos povos indígenas. Mas tal ação tinha um método: separar a racialização existente sobre os indígenas daquela sobre os negros, facilitando ainda mais a desumanização de ambos os grupos com estratégias diferentes. O controle total dos territórios, corpos e identidades dos indígenas; e o controle justificado pela racialização dos corpos dos negros e das negras.

Aos indígenas que as diversas violências alcançaram parcialmente, restava a opção de deixar de sê-lo, caso não aceitassem o controle e a tutela do Estado. Porém, não havia um lugar social para quem fizesse essa “opção”, já que sua ancestralidade, sua história e sua memória não eram mais componentes da sua existência.

A ideia de identidade nacional sempre foi uma espada pairando sobre as cabeças dos diversos povos indígenas. Ações como a Semana de Arte de 1922 ou a fundação da Universidade de São Paulo tinham como tarefa conformar a tal da "identidade brasileira" a partir desse olhar uniformizador, colhendo aqui e ali alguma pequena diferença, sem abrir mão do olhar colonizador.

Paulo Freire dizia: “Quando negamos a diferença, perdemos a chance de aprender o que o outro tem a nos ensinar.” Foi assim que a tragédia humanitária se abateu sobre os povos indígenas que não obedeceram à ordem estabelecida pelos senhores. As violências perpetradas, com dimensões diferentes, seguiam uma mesma lógica: a negação da diferença. Isso impediu uma mínima convivência saudável, que pudesse permitir uma troca, um aprendizado mútuo, como alertava Paulo Freire. Entretanto, o epistemicídio foi uma marca permanente.

Para os povos indígenas, como os Guarani, ser diferente é natural, porque o diferente é quem completa o círculo; ou seja, a essência da existência é a diferença.

Depois de todos os processos pelos quais passaram, os povos indígenas veem uma das farsas mais bem montadas e repisadas ao longo de mais de 500 anos passar por um processo de desmonte. Finalmente, muitas e muitos poderão chorar seus mortos, zelar por sua memória, ter orgulho de sua ancestralidade e pensar o mundo a partir de outras referências que não a eurocêntrica, ocidental, judaico-cristã. É lento? É. É contraditório? É. Provoca dores? Provoca. Mas, com todos esses percalços, seguiremos para romper todas as amarras e superar este mundo que nos foi imposto.

Essas 391 etnias e 295 línguas indígenas ainda não retratam a totalidade do que somos, mas são um passo para superar esse lugar ridículo e utilitarista que nos foi imposto. Como nos diz Ailton Krenak, buscando a fruição e a dança cósmica! E eu completaria: a diferença é o que faz o mundo dançar em mais de um ritmo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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