A fabricação do desaparecimento: o Estado Brasileiro como máquina de apagamento étnico (refletindo sobre os dados do IBGE)
Para os povos indígenas, como os Guarani, ser diferente é natural, porque o diferente é quem completa o círculo; ou seja, a essência da existência é a diferença
Antes de começar o texto, quero pedir desculpas aos diversos povos que compõem este território e pelo nome que lhe dão, pois cada povo tem um significado e interpretação diferentes para ele:
● Yvy Maraê’y - em Guarani, significa “terra sem males” ou “terra sagrada”.
● Nhandereko retã — também em Guarani, quer dizer “terra do nosso modo de ser” ou “território do nosso modo de vida”.
● Yvy Pindoráma — uma variação Guarani que junta o sentido de “terra das palmeiras” com “terra sagrada”.
● Wamarĩhö — “terra ancestral” - Xavante.
● A’yiká Pataxó — “nossa terra, nosso chão” - Pataxó.
● Omágua — que quer dizer “terra dos homens” - Tikuna ou Makita.
● Urihi — “a terra-floresta viva” - Yanomami.
● Yaathe Kahi — “nossa terra sagrada” - Fulni-ô.
● Bewóhé : “Brasil Tronco vermelho “ - Kariri
E a todos os outros que não pude alcançar, peço desculpas.
“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.”
Carlos Drummond de Andrade
Tentamos fugir da ideia de pluralidade fingindo uma pluralidade neste mundo moldado pelo pensamento judaico-cristão. Porém, o que temos acompanhado é uma visão limitada daqueles que invadiram este território, onde habitavam mais de mil povos, falantes de mais de mil línguas. Desde o início da invasão, os colonizadores utilizaram sua autorreferência para olhar para o outro, tentando moldar um mundo à sua imagem e semelhança, que espelhasse não apenas sua estética, mas também seu pensamento.
Não foi acidental que, ao longo de mais de cinco séculos, o genocídio tenha sido utilizado amplamente, não só contra os que estavam aqui, mas também contra os que foram sequestrados da África e trazidos para este território. E não, como se sabe fartamente, para "povoar" esta terra, mas para que, juntamente com os que já estavam aqui, se tornassem mão de obra escrava para enriquecer alguns homens brancos – como ocorre, em essência, até hoje.
Este mundo monocromático e unipolar foi se estabelecendo matando, apagando, roubando, estuprando e impondo seu pensamento: o pensamento do colonizador capitalista, para o qual a diferença não poderia existir, principalmente de pensamento. Essa possibilidade poderia e poderá fazer ruir as bases com as quais os invasores moldaram o entendimento da maioria. Mas, sobretudo, não deveriam existir os que aqui estavam. Portanto, uma prática permanente do Estado colono-capitalista foi apagar as identidades, declarando extintos os povos que não se curvaram a tal pensamento e que resistiram e resistem a esse mundo monocromático e unipolar.
Foi assim que armas como o genocídio, o estupro, a eugenia, o etnocídio e o epistemicídio tomaram forma através das Reformas Pombalinas, da Lei de Terras, da exclusão dos indígenas do Censo durante cem anos (1890-1991) e do controle permanente dos territórios e corpos indígenas. Essas ações impediram que as diferenças estéticas e de visão de mundo prosperassem, permitindo-se somente uma sociedade bicolor, que não expressava a gama de diversidade que é este território.
Essa visão foi moldada a partir de ações estruturantes no que ficou conhecido como República, que estabeleceu novos parâmetros para ler a sociedade, separando a racialização da etnicidade. Era como se os negros e as negras, vítimas de sequestros e das mesmas violências, estivessem em condição diferente da dos povos indígenas. Mas tal ação tinha um método: separar a racialização existente sobre os indígenas daquela sobre os negros, facilitando ainda mais a desumanização de ambos os grupos com estratégias diferentes. O controle total dos territórios, corpos e identidades dos indígenas; e o controle justificado pela racialização dos corpos dos negros e das negras.
Aos indígenas que as diversas violências alcançaram parcialmente, restava a opção de deixar de sê-lo, caso não aceitassem o controle e a tutela do Estado. Porém, não havia um lugar social para quem fizesse essa “opção”, já que sua ancestralidade, sua história e sua memória não eram mais componentes da sua existência.
A ideia de identidade nacional sempre foi uma espada pairando sobre as cabeças dos diversos povos indígenas. Ações como a Semana de Arte de 1922 ou a fundação da Universidade de São Paulo tinham como tarefa conformar a tal da "identidade brasileira" a partir desse olhar uniformizador, colhendo aqui e ali alguma pequena diferença, sem abrir mão do olhar colonizador.
Paulo Freire dizia: “Quando negamos a diferença, perdemos a chance de aprender o que o outro tem a nos ensinar.” Foi assim que a tragédia humanitária se abateu sobre os povos indígenas que não obedeceram à ordem estabelecida pelos senhores. As violências perpetradas, com dimensões diferentes, seguiam uma mesma lógica: a negação da diferença. Isso impediu uma mínima convivência saudável, que pudesse permitir uma troca, um aprendizado mútuo, como alertava Paulo Freire. Entretanto, o epistemicídio foi uma marca permanente.
Para os povos indígenas, como os Guarani, ser diferente é natural, porque o diferente é quem completa o círculo; ou seja, a essência da existência é a diferença.
Depois de todos os processos pelos quais passaram, os povos indígenas veem uma das farsas mais bem montadas e repisadas ao longo de mais de 500 anos passar por um processo de desmonte. Finalmente, muitas e muitos poderão chorar seus mortos, zelar por sua memória, ter orgulho de sua ancestralidade e pensar o mundo a partir de outras referências que não a eurocêntrica, ocidental, judaico-cristã. É lento? É. É contraditório? É. Provoca dores? Provoca. Mas, com todos esses percalços, seguiremos para romper todas as amarras e superar este mundo que nos foi imposto.
Essas 391 etnias e 295 línguas indígenas ainda não retratam a totalidade do que somos, mas são um passo para superar esse lugar ridículo e utilitarista que nos foi imposto. Como nos diz Ailton Krenak, buscando a fruição e a dança cósmica! E eu completaria: a diferença é o que faz o mundo dançar em mais de um ritmo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




