A Festa dos Tubarões
'Este é um artigo sobre política e sobre um país, a Nicarágua, no qual vivi durante dois anos e meio, ainda criança', escreve o colunista Marcelo Zero
Não. Não estou me referindo a tubarões metafóricos, desses que circulam nas praias poluídas do Master, nos retorcidos canais do sistema financeiro ou nas cloacas da Faria Lima.
Não. Me refiro a tubarões em sentido literal. Trato de tubarões reais, particularmente de uma espécie singular, a Carcharhinus leucas, conhecida popularmente como tubarão-touro.
Seria este, então, um artigo sobre biologia ou ictiologia?
Não. Este é um artigo sobre política e sobre um país, a Nicarágua, no qual vivi durante dois anos e meio, ainda criança.
No grande Lago da Nicarágua, que se comunica com o Mar do Caribe pelo Rio San Juan, há tubarões de água doce. Uma população peculiar de tubarões-toro, a qual tem a capacidade de viver tanto em água salgada, quanto em água doce.
Esse lago é o único lugar do mundo onde existe uma população permanente de tubarões de água doce, embora ultimamente essa população esteja em rápido declínio.
Porém, na década de 1960, quando lá morei, esse lago era coalhado desses tubarões. Espécie perigosa, uma das poucas que ataca seres humanos. Certa vez, tentei pegar um filhote na margem do lago, mas tive de soltá-lo. Sua pele áspera feriu minha mão.
Isso veio a calhar no episódio que ficou conhecido como La Masacre del 22 de Enero de 1967, ou simplesmente La Masacre de Manágua.Na época, a Nicarágua vivia sob a tirania implacável da família Somoza, que fora lá colocada pelos EUA, depois que Sandino, o grande líder da luta pela libertação da Nicarágua, eliminado foi por ordem de Anastasio Somoza García, em 1934.
Somoza ganhou o país de presente para mantê-lo sob o tacão de Washington. E o fazia com implacabilidade brutal, com auxílio da famigerada e assassina Guardia Nacional. Sua guarda pretoriana.
Havia, contudo, uma pequena, mas aguerrida oposição, que fazia o que podia, diante das circunstâncias extremas.
O principal líder dessa oposição era o jornalista Pedro Joaquín Chamorro, dono do “La Prensa”, o único veículo de mídia que tentava, sob rígida censura, levar alguma informação fidedigna à população da Nicarágua.
Cheguei a conhecê-lo, pois fui colega de classe de um dos seus filhos, Carlos, no colégio Centro América. Mesmo criança (tinha cerca de 10 anos) percebi que era um homem gentil e educado, um contraste com a máfia somozista, ignorante, brutal e arrogante, uma espécie de bolsonarismo piorado.
Um dos filhos do Somoza, por uma dessas ironias de um país com uma elite diminuta, estudava no mesmo colégio. Chegava lá numa grande caminhonete, cercado de seguranças armados. Mantínhamos prudente distância.
Pois bem, era 22 janeiro de 1967 e a União Nacional Opositora (UNO), que incluía o Partido Conservador, o Partido Social Cristão e o Partido Liberal Independente, resolveu fazer um grande comício em Manágua para apoiar a candidatura opositora de Fernando Agüero para as eleições gerais, que ocorreriam no dia 5 de fevereiro.
Lembro-me perfeitamente do clima de alguma esperança, do jingle do Agüero etc. Carlos, sempre muito sério (era difícil viver em um clima de constante ameaça contra sua família), estava mais relaxado. Parecia que “alguma coisa” boa e libertadora poderia acontecer.
Não aconteceu. Sucedeu o contrário.
Os milhares de manifestantes, que haviam se reunido na Avenida Roosevelt, umas das principais ruas da cidade, foram assassinados pela Guardia Nacional., que utilizou, essencialmente, os terríveis M1 Garands, fuzis estadunidenses de alta potência. Vi um desses disparar. Desintegrou um coco em pedacinhos.
Em desespero, alguns manifestantes se esconderam no Grand Hotel. Em vão. A Guardia Nacional usou um tanque Sherman para desalojá-los. Outros buscaram refúgio na Catedral. Foram retirados de lá e fuzilados.
Foi algo de extrema violência.
Não estava lá, claro. Tinha apenas 11 anos.
Morava no quilômetro 8 da Carretera Sur, um tanto longe do centro da cidade. Mesmo assim, dava para se ouvir, à distância, por alguns momentos, a fuzilaria interminável, que se estendeu pela noite.
Só ficava pensando: quanta gente está morrendo? Vão matar o Carlos e a família dele?
No dia seguinte meu pai, encarregado de negócios, foi à embaixada do Brasil fazer um relatório da tragédia. No caminho, passou por várias barreiras da Guardia Nacional.
Nessas barreiras, obrigavam homens e adolescentes a mostrarem cotovelos e joelhos. Se estivessem arranhados, poderia se considerar que você tinha estado se arrastando pelo chão, em manobras militares, e de ser, em consequência, um membro da Frente Sandinista em formação. Destino: prisão e fuzilamento.
Lembro-me do alívio que sentimos quando meu pai chegou em casa. Afinal, ele tinha boas relações com os Chamorro e o governo fascista de Somoza já tinha se queixado disso ao Itamaraty.
O detalhe mais macabro, porém, veio um pouco depois. Um sacerdote confidenciou à minha mãe que a Guardia Nacional, com o intuito de se livrar dos inúmeros cadáveres, encheu caminhões de corpos e os levou ao Lago de Nicarágua para serem lá despejados e servirem de comida farta para os tubarões.
Deve ter sido um grande banquete elasmobrânquio, sem dúvida.
Esse é, provavelmente, um dos motivos pelos quais até hoje não se sabe exatamente o número de vítimas fatais “del Masacre de Manágua”. Não obstante, a estimativa mais confiável é que tenham sido assassinadas mais de 1.500 pessoas.
Quem fez outra festa sinistra foi o jornal “Novedades”, do Somoza. Estampou, no dia seguinte, na primeira página, a imagem de 3 ou 4 membros da Guardia Nacional que teriam sido mortos por “membros armados” da oposição. Na realidade, eles morreram acidentalmente, no fogo cruzado promovido por sua própria corporação. Foi a primeira vez que tomei contato com uma grande fake news, avant la lettre.
O La Prensa, obviamente, não circulou e ficou fechado por um bom tempo. Somoza, mais que obviamente, “ganhou” as eleições.
Mas os Chamorro sobreviveram.
Anos mais tarde, em 1979, Pedro Joaquín Chamorro foi assassinado, numa rua de Manágua, enquanto dirigia, com tiros de escopeta calibre 12 na cara. Isso mesmo: tiros de escopeta calibre 12 na cara.
O incidente foi descrito oficialmente como um “acidente de trânsito”. A face de Pedro Joaquín Chamorro teria se chocado, por bizarro acidente, com os bagos de chumbo desgovernados.
Fiquei imaginando a cara desfigurada daquele homem, do pai do colega Carlos, que tão gentilmente cumprimentava nossa família quando nos encontrava.
Tal assassinato foi a gota d’água para o início da Revolução Sandinista.
Deixei a Nicarágua 11 meses depois daquele massacre. Com apenas 12 anos, um pouco antes de começar a ler Marx, Lênin etc., já sabia muito sobre imperialismo, desigualdades e do cinismo e da brutalidade abissais da direita latino-americana.
Já tinha lido Rubén Darío (“A Roosevelt”) e já sabia sobre William Walker e Sandino. Sobretudo, tinha presenciado como age uma tirania, apoiada integralmente pelos EUA.
O massacre, contudo, não abateu o povo nicaraguense.
Meses depois, voltava do colégio no ônibus escolar. Algum colega, não me lembro qual, começou a puxar o coro de uns versos bastante populares: “Muera Somoza ladrón y asesino, viva la Patria, Augusto Sandino”.
Lá na frente, o motorista abriu um largo sorriso.
Alguma coisa iria acontecer. Dava para sentir.
E aconteceu. Anos mais tarde, mas aconteceu.
E, dessa vez, a festa não foi dos tubarões. Literais ou metafóricos. Foi do povo.
E foi bonita, muito bonita. Bonita como a Nicarágua.
De novo, não estava lá, mas tenho a quase certeza de que escutei, muito à distância, algumas gargalhadas do sério Carlos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




