A judicialização da política e a politização da justiça (ou de como indignar-se com o óbvio)
Já passou da hora de o pensamento progressista no campo do direito entender que a linguagem jurídica é contraditória. O enunciar uma regra é o primeiro passo para que a realidade permaneça em desacordo com ela

Eventos recentes trouxeram à baila o velho debate sobre a judicialização da política e a politização da justiça. Trata-se, segundo alguns, de um dos mais graves problemas institucionais da República brasileira.
O primeiro evento foi o afastamento do governador Wilson Witzel por decisão monocrática do relator do caso no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, posteriormente confirmado pela Corte Especial[1]. O segundo é a passagem da presidência do Supremo Tribunal Federal ao ministro Luiz Fux, conhecido aliado da operação Lava-Jato[2].
Pois bem, o que a retomada desse debate nos diz? Antes de tudo, que o pensamento jurídico progressista tem o hábito arraigado de indignar-se com o óbvio.
Que a teoria tradicional sustente a tese de que o Poder Judiciário não deve ser um órgão político; que queira nos convencer de que os juízes devem ser neutros e imparciais; que defenda a hipótese de que problemas políticos devem ser resolvidos no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, cabendo ao Judiciário o deslinde de questões jurídicas estritamente “técnicas”, é absolutamente compreensível, pois ela cumpre seu papel quando reafirma os termos da linguagem jurídica, forjada para manter as estruturas de poder vigentes desde sempre, e, portanto, perpetuar em seus lugares os tradicionais donos do poder.
Que o pensamento progressista se deixe arrastar por uma teoria tão inverossímil quanto superficial, isso é realmente uma incógnita.
Se levarmos a sério a célebre definição de Aristóteles, segundo a qual política significa tudo quanto diz respeito à boa organização da pólis, não há quaisquer razões para se deduzir que os juízes não são agentes políticos no sentido mais preciso do termo. Afinal, cabe-lhes “dar a cada um o que é seu” e a decisão sobre o que pertence a quem é uma decisão política.
Poder-se-ia argumentar que Aristóteles trata de uma realidade muito distante da nossa. Que suas reflexões, inobstante clássicas, não se aplicam ao Brasil.
Pois bem, vejamos então o que diz Alexis de Tocqueville em sua análise da democracia nos Estados Unidos: “Um estrangeiro compreende a organização judiciária americana com dificuldade. Não há, por assim dizer, acontecimento político em que ele não veja ser invocada a autoridade do juiz; daí conclui naturalmente que, nos Estados Unidos, o juiz é um dos primeiros poderes políticos”[3].
Ora, a República brasileira pretende-se inspirada da República estadunidense. Não à toa a Constituição de 1891 nos chamou de “Estados Unidos do Brasil”, denominação que figura até hoje no imaginário de muitas pessoas.
Não obstante, ainda é possível que alguém diga que a obra de Tocqueville gravita em torno da ciência política e não da ciência do direito, razão pela qual não deve ser invocada. Os cânones do bom pensamento jurídico indicariam que o Poder Judiciário deve ser “neutro” diante de questões políticas.
Não custa, então, dar uma olhada no que diz Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito: “A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, a criar as únicas leis justas (...) Decerto existe uma diferença entre esses dois casos, mas é uma diferença somente quantitativa, não qualitativa (...)”[4].
Kelsen deixa claro que as tarefas exercidas pelo legislador, administrador e julgador são essencialmente as mesmas e que a diferença que existe é meramente quantitativa e não qualitativa. Em outras palavras, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são ao mesmo tempo poderes políticos e jurídicos, sob quaisquer ângulos que se pretenda analisar.
Por isso, não existe nada mais nonsense, nada mais sem propósito do que indignar-se com uma eventual “judicialização da política” ou “politização da justiça”, pois são denominações diferentes para o mesmo fenômeno, e, o que é pior, um fenômeno que é absolutamente comum e normal no funcionamento das “democracias” modernas.
Uma vez mais, repita-se: que a teoria tradicional se valha desse argumento retórico é compreensível. A partir dele se pode dizer, por exemplo, que a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi legal e legítima, pois o ex-juiz Sérgio Moro limitou-se a agir tecnicamente, aplicando a lei ao caso concreto, sendo certo que suas decisões foram confirmadas por várias instâncias superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal. Sabemos, no entanto, que o então juiz atuou como agente político no sentido mais estrito do termo.
A tese de que a judicialização da política ou politização da justiça é um fenômeno que foge à regra serve, do ponto de vista prático, a um propósito: fortalecer o poder político dos membros do Poder Judiciário. Ao se autoproclamarem “servidores públicos” e não políticos, juízes, desembargadores e ministros escapam aos mecanismos republicanos de controle aos quais se submetem os chefes do Poder Executivo e os membros do Poder Legislativo, a começar pelo crivo “democrático” obtido pelo voto popular.
Não, não estou sugerindo que juízes devam ser eleitos pelo voto direto, secreto, universal e periódico. Mas há que se reconhecer que “vitaliciedade” e “inamovibilidade” são princípios monárquicos e não republicanos. Em tese, um ministro do Supremo Tribunal Federal pode permanecer no cargo por quarenta anos; um juiz de primeiro grau por mais tempo ainda. Não há como recusar o argumento de que se formam pequenos feudos ou oligarquias de poder.
O que há de mais grave, no entanto, não é isso. Ao aderir ao discurso tradicional o pensamento progressista desguarnece as forças progressistas quando estas estão no poder. Quando a polícia federal, no auge da operação Lava-Jato, passou a agir de modo não republicano, presenciamos a omissão de autoridades de altos escalões ministeriais, que cultivaram um imobilismo extremo sob o argumento de defesa do princípio republicano.
Ora, princípios não são “entidades” que subsistem por si mesmas em uma esfera abstrata de existência autônoma. São vetores para ações concretas. A omissão fundada em um princípio é o modo mais eficaz de negá-lo praticamente.
Já passou da hora de o pensamento progressista no campo do direito entender que a linguagem jurídica é contraditória. O enunciar uma regra é o primeiro passo para que a realidade permaneça em desacordo com ela.
Seria um grande serviço prestado à democracia (aqui sem aspas) reconhecer, tal como fez Tocqueville, que os juízes não são apenas poderes políticos, mas são os “primeiros” poderes políticos.
[1] AMORIN, Felipe; MELLO; Igor. “14 x 1: STJ confirma afastamento de Witzel do governo do Rio”. UOL. Política. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/02/stj-julgamento-wilson-witzel.htm >
[2] D’AGOSTINHO, Rosanne; GARCIA, Gustavo. “Luiz Fux toma posse como presidente do Supremo Tribunal Federal”. G1. Brasília. Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/09/10/luiz-fux-toma-posse-como-presidente-do-supremo-tribunal-federal.ghtml >
[3] TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América. Campinas (SP): Vide Editorial, 2019, p. 118.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
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