A Miopia Estratégica de Parte da Europa
França, Itália, Polônia e Hungria resistem ao Acordo
O cenário geopolítico mundial é muito claro. E duro. Muito duro.
Trump resolveu mandar às favas todo e qualquer resquício de respeito à “ordem mundial baseada em regras” (regras que os EUA criaram, frise-se), ao multilateralismo e às normas básicas do direito internacional público.
Jogou no lixo velhas alianças e renunciou ao uso do soft power.
A estratégia de Trump é evidente: impor os interesses dos EUA em negociações bilaterais essencialmente assimétricas. Usa o velho divide et impera. Se utiliza de um protecionismo brutal e, inclusive, da ameaça militar, para tornar a “América grande, de novo”.
E isso acontece em um contexto no qual a OMC tornou-se moribunda.
Com efeito, no campo estritamente multilateral, a OMC não conseguiu avançar um milímetro sequer, depois da Rodada Uruguai, concluída em dezembro de 1994. Todas as outras rodadas de negociação fracassaram. Em todo esse tempo, a OMC conseguiu apenas concluir o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, firmado em 2015. Um avanço modesto, que não ampliou as degravações tarifárias.
Ademais, o sistema de solução de controvérsias da OMC, que faz a aplicação e o “reinforcement” das regras comerciais mundiais, está paralisado desde 2018, porque os EUA se recusam a designar os juízes para o Órgão de Apelação daquela entidade. O sistema internacional de comércio está, portanto, inerte, desde o ponto de vista das negociações, e também da perspectiva da aplicação e observação das regras multilaterais acordadas.
O campo do comércio planetário já tinha virado uma “terra de ninguém”, antes do segundo governo Trump. Com Trump, se tornou um campo de batalha, uma guerra “bilateralizada” e assimétrica, no contexto de uma desordem mundial “hobbesiana”.
Nesse quadro, o Brasil resolveu investir, exitosamente, frise-se, na busca de novos parceiros e no aprofundamento das parcerias estratégicas.
E uma das principais medidas, para contornar o quadro criado por Trump, é a da celebração do acordo Mercosul-UE.
Claro está que tal acordo, se aprovado, não fará milagres. Mas poderia representar algum alívio para os países que o comporiam.
Antes de prosseguir, é preciso reconhecer que o texto antigo do Acordo, fechado às pressas em 2019, era ruim e apresentava perigos para o Brasil, principalmente para sua indústria.
O IPEA chegou a elaborar uma NOTA TÉCNICA (“Acordo Mercosul-União Europeia e mudança estrutural: Considerações a partir de modelos de equilíbrio geral”, assinada por Thiago Sevilhano Martinez e publicada em junho de 2023,), na qual se afirmava que:
”A partir da literatura baseada em modelos apresentada nesta nota, entendemos que deverá se agravar a desindustrialização prematura da economia brasileira e a especialização em setores de menor potencial de fomento à inovação e economias de conhecimento. Considerando também evidências da última grande mudança na política comercial brasileira, isto é, a abertura dos anos 1990-1995, é provável que os impactos sejam adversos e duradouros sobre o mercado de trabalho das regiões mais industrializadas do país.
Para o balanço geral do acordo, deve-se ainda ponderar os efeitos das regras de compras públicas, propriedade intelectual e proteção ao meio ambiente, que não foram objeto desta nota. Esses tópicos ainda estão em discussão pelos dois blocos e são demandas típicas dos países europeus. Seus efeitos são de difícil mensuração, mas é provável que as disciplinas de compras governamentais e propriedade intelectual limitem a capacidade dos países do Mercosul em adotar políticas industriais e que as regras ambientais possam ser usadas futuramente como formas disfarçadas de protecionismo.”
Contudo, esse texto foi substancialmente renegociado no governo Lula, justamente com a perspectiva de proteger nossa indústria, principalmente os setores que são “portadores de futuro”.
O setor automotivo, por exemplo, uma grande preocupação do Brasil, passou a contar com proteções e salvaguardas mais adequadas.
Diante da importância do setor para o Brasil, o Mercosul negociou cronogramas mais longos para a redução tarifária nos casos de veículos eletrificados e para veículos de novas tecnologias: i) para veículos eletrificados, a desgravação passará a se dar em 18 anos; ii) para veículos a hidrogênio o período será de 25 anos, com 6 anos de carência; e iii) para novas tecnologias, 30 anos, com 6 anos de carência. Até esta etapa negociadora, nenhum cronograma de desgravação era superior a 15 anos.
Ademais, foi estabelecido um mecanismo inédito de salvaguardas para veículos. Caso haja um surto de importações da União Europeia que cause dano à indústria, o Brasil pode suspender o cronograma de desgravação de veículos ou retomar a alíquota aplicável às demais origens (hoje, de 35%) por um período de 3 anos, renovável por mais 2 anos, sem necessidade de oferecer compensação à União Europeia.
No campo estratégico dos minerais críticos, o Brasil garantiu o direito de aplicar restrição às exportações desses recursos, caso julgue apropriado. Nesse caso, a alíquota aplicável à UE deverá ser reduzida, em comparação à incidente sobre outros destinos. O pré-acordo adotado em 2019 proibia qualquer incidência de direito às exportações no comércio entre Brasil e União Europeia.
Esses são apenas dois exemplos, entre muitos outros. O fato é que o texto do Acordo, com Lula, melhorou bastante. Não assegura, evidentemente, desenvolvimento e industrialização. E ainda há riscos, como em todo acordo entre países de nível assimétrico de competitividade.
Como bem reconheceu Lula, o Acordo renegociado beneficia mais a Europa que o Mercosul, já que vários países daquele continente, como a Alemanha (mas não apenas ela) têm indústrias e serviços mais modernos e desenvolvidos que os do Brasil e os do Mercosul. Não obstante, no atual contexto restritivo do comércio mundial, e utilizando-se das salvaguardas do Acordo, o Brasil e o Mercosul poderiam obter algum benefício.
Mas, mesmo no campo agrícola, tão sensível para os europeus, a UE será muito beneficiada.
Segundo a própria UE, o Acordo vai impulsionar as exportações desse bloco, eliminando as elevadas tarifas para os principais produtos agrícolas de exportação desse bloco.
Irá prevenir a imitação e cópia de mais de 340 produtos alimentares tradicionais da UE, reconhecidos como Indicações Geográficas (IG). Este é o maior número de IG já protegido em um acordo da UE.
Tornará os procedimentos de segurança alimentar mais claros, previsíveis e menos burocráticos para os exportadores da UE.
Concederá acesso muito limitado (é verdade) ao mercado da UE para produtos agroalimentares sensíveis, como carne bovina, aves ou açúcar, provenientes do Mercosul.
As tarifas atuais para produtos lácteos (28%), chocolate e confeitaria (20%), bebidas alcoólicas (35%) e vinhos (27%) serão zeradas, no Mercosul.
Não bastasse, na undécima hora, o Parlamento Europeu, na última quarta-feira, ainda adicionou salvaguardas adicionais para o agro europeu, tais como:
- Um aumento no volume de importações superior a 8%, em relação à média de três anos, seria prova de prejuízo grave e desencadearia uma investigação com vista à suspensão das tarifas preferenciais.
- Uma diminuição dos preços superior a 8%, em relação à média de três anos, seria também considerada um prejuízo grave e daria motivo para iniciar uma investigação.
- A Comissão pode alargar o âmbito da sua monitorização a produtos não sensíveis, a pedido da indústria da UE.
- As investigações devem ser concluídas no prazo mínimo de seis meses, no caso dos produtos não sensíveis, e o mais rapidamente possível, mas certamente após três meses no caso dos produtos sensíveis.
- No caso dos produtos sensíveis, será possível adotar medidas provisórias, sem demora e no prazo de 21 dias após a notificação.
- A Comissão Europeia monitorará de forma constante e proativa as importações de produtos sensíveis e elaborará um relatório de monitoramento, pelo menos a cada seis meses, com uma avaliação do impacto dessas importações, e apresentará um relatório ao Parlamento e ao Conselho.
- A Comissão Europeia emitirá uma declaração garantindo um maior alinhamento das normas de produção aplicadas aos produtos importados, nomeadamente em matéria de bem-estar animal e pesticidas dos países do Mercosul.
- O relator Gabriel Mato (PPE, ES) afirmou posteriormente: “Hoje, enviamos uma mensagem clara: podemos avançar com o acordo do Mercosul sem deixar os nossos agricultores desprotegidos. Concordamos sobre um acordo robusto e rápido”
Mesmo com todas essas salvaguardas, França, Itália, Polônia e Hungria resistem ao Acordo.
A resistência dos agricultores europeus, principalmente franceses, que dependem de uma montanha de subsídios, a esse e outros acordos, não é algo novo. Sempre foi assim. Eles têm muita força, pois as áreas rurais da França estão sobrerepresentadas no parlamento francês, eleito por voto distrital.
Os agricultores franceses recebem cerca de € 9 bilhões de ajuda a cada ano, o que representa dois terços da sua renda. Sem essa “ajudinha”, muito setores da agricultura francesa não sobreviveriam.
Há um déficit de competitividade agrícola francesa. Essa é uma produção que valoriza o savoir-faire familiar e tradicional. Não tem a produtividade da agricultura intensiva praticada pelas maiores potências mundiais.
Esse déficit vem crescendo, mesmo relativamente a outras agriculturas europeias.
Desde 2015, a França importa mais do que exporta aos vizinhos da União Europeia. A cada duas frutas ou legumes consumidos no país, um vem de fora.
A situação pode piorar, pois há riscos de cortes na Política Agrícola Comum (PAC). O próximo orçamento (2028-2034) poderá ser 20% menor, o que impactará mais a França, principal beneficiária da PAC.
Esses possíveis cortes estão relacionados à pressão de Trump, pelo aumento dos gastos com Defesa, até atingir o patamar de 5% do PIB. A Europa simplesmente se curvou a essa pressão.
A Europa também se curvou à pressão dos EUA para abandonar o barato gás russo, o que ocasionou um aumento dos preços da energia e uma crise de competitividade também na indústria.
A indústria automotiva alemã, em particular, está em crise. Está perdendo muito mercado na China (o maior mercado do mundo) e lutando contra custos de produção crescentes.
Tudo isso devido, em boa parte, a Trump e aos EUA. Não por causa do Brasil e do Mercosul.
A impressão que dá é que parte da Europa está utilizando o Brasil e o Mercosul como bodes expiatórios para uma crise provocada por uma submissão geopolítica a Trump e por decisões profundamente equivocadas advindas dessa escolha. Além, é claro, dos problemas intrínsecos da economia europeia.
Como ficou bem claro na nova Estratégia de Segurança Nacional, Trump nutre profundo desprezo pela Europa e deseja, no fundo, atomizá-la.
A extrema-direita americana estimulou o Brexit e não tenho a menor dúvida que Trump deseja fazer o mesmo com outros países europeus.
Os questionamentos brasileiros sobre a conveniência do Acordo Mercosul-UE para os interesses nacionais são compreensíveis e racionais, embora eu considere, repito, que o texto tenha melhorado bastante com o chamado “Pacote de Brasília”. De qualquer forma, o Acordo terá de ser aprovado por nosso Congresso, onde será devidamente dissecado, espero.
Os questionamentos europeus, porém, são fruto de preconceitos e de uma miopia inacreditável.
A Europa, ou parte dela, está “falando fino com Trump e falando grosso com o Brasil e o Mercosul”.
Falando claro, a Europa está emparedada entre o protecionismo brutal de Trump e a ascensão da China.
Vai se arrepender, se não diversificar suas parcerias.
O Brasil tem Lula. A Europa tem Macron e Meloni.
Há uma grande diferença.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




