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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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A 'pandemia esquecida': por que a pandemia com 4 milhões de vítimas foi silenciada pela História?

Apesar de vitimar até 4 milhões de pessoas, a pandemia entre 1968 e 1970 foi ofuscada por guerras, protestos e avanços tecnológicos

Vírus (Foto: Vírus)

Entre 1968 e 1970, o mundo foi varrido por uma devastadora onda viral: a Gripe de Hong Kong, causada pelo vírus Influenza A (H3N2). Com uma estimativa de 1 a 4 milhões de mortes globais, este evento maciço de saúde deveria figurar nos livros de história como uma das grandes tragédias do século XX. No entanto, ela é tristemente conhecida como a "pandemia esquecida".

Por que uma catástrofe com a escala de uma guerra silenciosa desapareceu da memória coletiva, especialmente em comparação com a Gripe Espanhola de 1918 ou a recente COVID-19? A resposta reside em uma complexa intersecção entre biologia, mídia e prioridades sociais de cada época.

O Mistério do Apagamento Histórico

A Gripe de Hong Kong, um subtipo viral resultante de uma recombinação genética, surgiu em julho de 1968 e se espalhou rapidamente. Mas ela encontrou uma sociedade global distraída por outros acontecimentos e, paradoxalmente, mais equipada para enfrentá-la.

Baixa Percepção de Risco: Embora 4 milhões de mortes sejam inaceitáveis, a taxa de mortalidade dessa pandemia foi, proporcionalmente, menor do que a da Gripe Espanhola. Além disso, a ocorrência de imunidade cruzada (a semelhança com o vírus da Gripe Asiática de 1957) suavizou a gravidade em parte da população. O avanço da medicina, com o rápido desenvolvimento de vacinas, também trouxe uma sensação de controle científico.

Ausência de Choque Social: Diferente de pandemias que paralisam a vida moderna, a Gripe de Hong Kong não impôs lockdowns em larga escala nem o fechamento generalizado de escolas ou do comércio. A vida, em grande parte, continuou. A ausência de medidas drásticas resultou na ausência de uma "memória de confinamento" que gerasse uma ruptura social marcante.

O Ofuscamento Midiático: Talvez o fator mais crucial seja o calendário. O final dos anos 60 era um caldeirão de acontecimentos globais. A imprensa estava dominada pela escalada da Guerra do Vietnã, os protestos pelos direitos civis nos EUA, a corrida espacial e, notavelmente, os Movimentos Estudantis de Maio de 1968. O barulho das revoltas sociais e ideológicas superou o "zumbido" silencioso da doença.

1968: A Gripe Contra a Revolução

A coincidência temporal da pandemia com o turbulento Maio de 1968 oferece uma reflexão poderosa sobre como a História seleciona seus eventos.

Enquanto a Gripe de Hong Kong era um evento biológico, caótico, invisível e global que exigia contenção silenciosa, Maio de 1968 foi barulhento, ideológico, visual e exigia a expansão da liberdade e da expressão. A atenção pública se polarizou em torno daquilo que era capaz de gerar narrativas, símbolos e mudanças políticas imediatas.

A pandemia, em contraste, não produziu reformas sanitárias ou políticas marcantes. Ela simplesmente passou, deixando milhões de vítimas para trás, mas sem alterar fundamentalmente a trajetória da sociedade. Assim, enquanto as imagens de estudantes nas ruas de Paris e o debate sobre o futuro foram eternizados, a "pandemia esquecida" prova que a memória histórica nem sempre é determinada pela estatística de mortes, mas sim pela capacidade de um evento de moldar a narrativa humana e de gerar uma ruptura audível.

Em nítido contraste, a chegada da COVID-19 ao Brasil produziu um choque imediato e total, com paralisação da vida, ampla cobertura midiática e um profundo impacto político-social. No entanto, mesmo com essa notoriedade, a longo prazo, essa crise pode seguir o mesmo caminho da Gripe de Hong Kong. Citando o físico e Prêmio Nobel Richard Feynman, que dizia: "A primeira regra é não se enganar; e a segunda regra é que você pode ser a pessoa mais fácil de enganar." Em outras palavras, o perigo não reside apenas no evento biológico, mas na nossa "memória seletiva" - se a sociedade brasileira não for capaz de aprender e de instituir mudanças estruturais duradouras, o trauma do lockdown e os dados de mortalidade maciça podem, ironicamente, acabar sendo esquecidos ou normalizados, como a Gripe de Hong Kong, à medida que a urgência diminui e nos enganamos pensando que o perigo foi permanentemente superado.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.