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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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A Pedagogia da Obediência

"Escondendo Cínthias para manter o silêncio"

São Joaquim de Bicas (MG) - 24/01/2024 - Sala de aula da Aldeia Kurãma, em comuniudade indígena Pataxó, na zona rural de Brumadinho (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Quando Cíntia Chagas revelou que "os piores vídeos que eu fiz contra as feministas foram justamente em dias subsequentes a agressões mais graves que eu sofri", ela não apenas confessou uma contradição pessoal - ela expôs o funcionamento perfeito de um sistema educacional que há séculos trabalha para ocultar, silenciar e punir mulheres que ousam nomear a violência que vivenciam. A pedagogia da obediência é, antes de tudo, uma pedagogia do silenciamento: ensina-se meninas a obedecerem, aceitarem, calarem - e, quando a violência inevitavelmente chega, a direcionarem sua raiva não contra agressores, mas contra aquelas que denunciam o sistema.

Não é novidade. O fascismo já sabia disso.

A Reforma Gentile: O Precedente Histórico da Educação para a Dominação

Entre 1922 e 1923, o filósofo Giovanni Gentile, primeiro Ministro da Educação do regime fascista de Mussolini, realizou uma ampla reforma do sistema educacional italiano que combinava "afirmação da liberdade didática do professor" com "aumento acentuado de centralização e controle autoritário". A reforma explicitava "o espírito da filosofia idealista adaptado ao ideal político do fascismo: manutenção rigorosa dos quadros sociais atuais, recrutamento limitado da elite, separação, ao sair da infância, em duas classes".

Gramsci analisou a reforma e apontou que ela "se voltava à manutenção dos privilégios culturais de um grupo sobre os demais, impedindo o acesso dos subalternos à universidade e à cultura humanista. Mas há algo ainda mais sinistro: a reforma implementou "o ensino de religião no primário e enfatizou as escolas particulares, esmagadoramente mantidas pela Igreja", consolidando uma aliança entre Estado fascista e poder eclesiástico para controlar não apenas o que se ensinava, mas quem tinha direito a aprender o quê.

A Reforma Gentile não foi apenas sobre currículo - foi sobre criar uma arquitetura educacional hierárquica onde cada pessoa "conhecesse seu lugar": elite acima, povo abaixo; homens comandando, mulheres obedecendo; Igreja moralizando, Estado controlando. Era pedagogia da dominação disfarçada de organização escolar.

Brasil 2025: O Retorno da Mordaça com Câmeras e Leis

O Brasil de 2025 opera esquizofrenicamente: enquanto o projeto-piloto SADI (Sistema de Autoavaliação de Desenvolvimento Inteligente) utilizou câmeras e Inteligência Artificial em 11 escolas estaduais de São Paulo, "transformando o ambiente pedagógico em um laboratório de controle social", e o deputado estadual Lucas Bove - o mesmo agressor denunciado por Cíntia Chagas - propôs lei para instalar câmeras "dentro das salas de aula" sob pretexto de "segurança".

A ironia é cruel, mas reveladora: o sistema classificava alunos como "atento" (verde) ou "desatento" (laranja), gerando "índices de engajamento" que eram usados "para pressionar e monitorar o desempenho dos professores, transformando a sala de aula em um ambiente de vigilância constante". Professores foram filmados, monitorados, ameaçados. A liberdade de cátedra - princípio fundamental da educação democrática - foi substituída por denuncismo tecnológico.

Paralelamente, projetos de lei como o "Escola sem Partido" proliferaram: 169 projetos foram apresentados entre 2014 e 2022 nos legislativos municipais de 23 estados, proibindo "o uso da palavra 'gênero' e da expressão 'orientação sexual' em sala de aula". A Human Rights Watch documentou que essa legislação criou um "efeito inibidor" que "afeta a disposição de alguns professores de tratarem sobre gênero e sexualidade em sala de aula".

Resumindo: câmeras para vigiar professores que ousem falar sobre violência de gênero; leis para criminalizar quem mencione "ideologia de gênero"; mas silêncio absoluto sobre a violência real acontecendo dentro das casas, dentro das igrejas, dentro das delegacias.

O Cinismo Revelado: Violência nos Estratos Conservadores

Enquanto conservadores atacavam educação sexual nas escolas sob pretexto de "proteger crianças", os dados revelavam o oposto. Em 2023, uma em cada quatro denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos envolvendo agentes de segurança pública eram de violência doméstica, e "seis em cada dez vítimas eram crianças, adolescentes ou idosas". A maioria dos profissionais suspeitos das violações "eram familiares ou pessoas próximas das vítimas: apenas 4,5% eram desconhecidos".

Policiais - os mesmos que deveriam proteger mulheres - eram agressores domésticos em proporções alarmantes. Pastores, líderes religiosos, figuras "de bem" da sociedade conservadora: todos protegidos pelo silêncio, todos beneficiários de uma educação que ensina mulheres a não denunciarem, a perdoarem, a "preservarem a família". Como Cíntia confessou: "o tempo todo falava bem do meu casamento para que eu mesmo acreditasse que eu havia dado certo" - porque a educação conservadora ensina que o fracasso do casamento é fracasso da mulher, nunca do sistema.

A hipocrisia é estrutural: enquanto inventam pânicos morais sobre "doutrinação de gênero" e "ideologia LGBT" nas escolas, naturalizam e ocultam a violência massiva contra mulheres perpetrada justamente pelos "guardiões da moral".

Hierarquia: Mascarando Dominação como "Ordem Natural"

A pedagogia da obediência funciona através da hierarquia. Gentile defendia que "o indivíduo só pode amadurecer sua liberdade individual dentro do Estado", e que o Estado deveria ser um "educador" que estabelece uma "forte personalidade" capaz de "moderar a individualidade dos indivíduos". Traduzindo: liberdade significa obedecer à autoridade; educação significa aprender seu lugar na hierarquia.

No Brasil contemporâneo, essa lógica se replica: homem acima, mulher abaixo; adulto acima, criança abaixo; padre/pastor acima, fiéis abaixo; professor vigiado abaixo, câmera de IA acima. Hierarquia não é organização - é dominação. E a educação conservadora trabalha incansavelmente para fazer essa dominação parecer natural, divina, inevitável.

Rita Lee foi expulsa dos Mutantes pelo "argumento de que ela não tinha calibre como instrumentista", mas na verdade "o machismo a expulsou". Dilma Rousseff afirmou que "a história vai mostrar como o fato de eu ser mulher me tornou mais resiliente", reconhecendo que parte do golpe tinha como base "o fato de eu ser a primeira presidenta eleita". Mulheres que rompem hierarquias são punidas - e a educação conservadora garante que outras mulheres aprendam a lição: "não suba, não questione, não denuncie".

A "Ética dos Costumes": Normalizando Algumas Violências, Inventando Outras

A pedagogia da obediência opera através de uma "ética dos costumes" que funciona como ilusionismo moral: algumas violências (contra mulheres, contra crianças, contra LGBTQIA+) são normalizadas, romantizadas, tornadas invisíveis; outras violências (imaginárias, como "doutrinação de gênero") são hipervisibilizadas, exageradas, transformadas em pânico moral.

Conservadores mobilizaram o conceito de "ideologia de gênero" causando "pânico moral e marginalizando grupos mais vulneráveis como os movimentos feministas e LGTBI", enquanto o Brasil mantém "um índice de 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, o quinto maior do mundo" segundo a OMS, com "a maioria dos crimes cometida dentro de casa, não raro por pessoas próximas às vítimas".

O jogo de ilusionismo é perfeito: enquanto todos olham para o espantalho da "ideologia de gênero" nas escolas, ninguém olha para os feminicídios nas casas. Enquanto câmeras vigiam professoras que mencionem "orientação sexual", nenhuma câmera vigia pastores e policiais que agridem em casa. Enquanto leis punem educadores que falem sobre consentimento, nenhuma lei efetivamente pune agressores protegidos pela "santidade" da família tradicional.

Família: Cortina de Fumaça para Colonização de Corpos

O conceito de "família tradicional" não é sobre amor ou proteção - é cortina de fumaça para implementar projetos de colonização dos corpos e desejos das mulheres, das periferias, dos "não queridos" pelas elites. A educação conservadora constrói "a felicidade das mulheres atrelada à conquista de um casamento feliz", reduzindo toda existência feminina ao projeto matrimonial Terra.

Por isso Cíntia Chagas negava a violência: "Isso era um processo de negação, porque a partir do momento em que essas mulheres [feministas] tocavam naquele assunto, aquele assunto que a minha mãe desconhecia, que os meus amigos desconheciam". A família funciona como prisão silenciosa - e a educação conservadora fornece as correntes: ensina que falar é trair, denunciar é destruir, resistir é falhar.

Cíntia confessou: "Confundi força com abuso. Ele tem arma, se eu ficasse, o risco era virar mais uma vítima de feminicídio" - e mesmo assim, durante anos, atacou feministas que denunciavam exatamente esse sistema. É assim que a pedagogia da obediência funciona: transforma vítimas em defensoras de seus algozes.

Conclusão: Esconder “Cínthias” é Projeto Político-pedagógico da direita

A educação conservadora trabalha sistematicamente para esconder Cínthias de toda forma possível:

  • Através de currículos que não ensinam sobre consentimento, autonomia corporal, reconhecimento de violências
  • Através de leis que criminalizam professores que ousem falar sobre gênero e sexualidade
  • Através de câmeras que vigiam educadores enquanto agressores domésticos ficam livres
  • Através de hierarquias que naturalizam dominação como "ordem"
  • Através de uma "ética dos costumes" que esconde violências reais enquanto inventa violências imaginárias
  • Através da sacralização da "família" como espaço onde mulheres devem calar, obedecer, sofrer em silêncio

Quando Cíntia "fez as pazes com o feminismo" após receber acolhimento da esquerda, houve "a falência simbólica do projeto neoconservador de feminilidade". A pedagogia da obediência teme nada mais do que mulheres que aprendam a desobedecer, a nomear violências, a se recusarem a calar.

Por isso controlam a educação. Por isso vigiam professoras. Por isso criminalizam conversas sobre gênero. Por isso sacralizam a família. Por isso normalizam violência doméstica enquanto inventam pânicos morais.

Porque educar para a liberdade é perigoso. Educar para a obediência é fundamental para manter o sistema de dominação funcionando.

E enquanto câmeras filmam professoras, mulheres sangram em silêncio - exatamente como o projeto conservador planejou.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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