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Beatriz Vargas Ramos

Formada em direito pela UFMG, Beatriz Vargas é professora de direito penal e criminologia, na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB desde junho de 2009. É autora de artigos e trabalhos de pesquisa no campo da criminologia e do direito penal

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A renúncia de Pezão

"O governador Pezão pediu intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Em outra versão, ele teria solicitado uma interferência menos drástica, mas acabou concordando com a proposta de intervenção. Numa terceira versão, a ideia nem sequer teria partido dele, porém, foi convencido a aceitá-la. Certo é que o decreto de intervenção foi assinadol", escreve a colunista Beatriz Vargas, professora de direito penal da UnB; ela lembra que o Rio está longe de ser o estado mais violento do Brasil, diz que o decreto é inconstitucional e aponta interesses midiáticos e políticos na operação; "em tempos de pós-verdade, o sucesso das operações de intervenção no palco da cidade do Rio vai depender, em boa medida, da cobertura e dos holofotes da mídia dominante"

17/02/2018 Reunião de trabalho sobre segurança (Rio de Janeiro - RJ, 17/02/20) Palavras do Presidente da República, Michel Temer (Foto: Beatriz Vargas Ramos)
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O governador Pezão pediu intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Em outra versão, ele teria solicitado uma interferência menos drástica, mas acabou concordando com a proposta de intervenção. Numa terceira versão, a ideia nem sequer teria partido dele, porém, foi convencido a aceitá-la. Certo é que o decreto de intervenção foi assinado. O acordo deixou de fora o Conselho da República e vai passar pela apreciação do Congresso Nacional.

Pezão falou à imprensa que vem pedindo apoio do governo federal desde abril de 2014. Argumentou, de público, que “não foi trivial” o que a polícia teve de enfrentar. Não, não foi o roubo, a violência, o tiroteio. Foi urina no metrô e “invasão” de bloco de foliões na área pública do aeroporto Santos Dumont – o que, vale lembrar, aconteceu sem dano material e sem afetação da rotina de operações locais. Foi também “a desordem urbana”, as barracas nas praias de Ipanema e do Leblon, uma “grande ocupação de pessoas ali acampadas”, segundo o governador ausente – estava em Piraí/RJ, com “todo direito, em sua casa, a uma hora e meia da capital”. Disse que foram mais de 200 blocos que saíram sem autorização. “Isso fugiu mesmo ao nosso controle”, admitiu. E arrematou: “não me diminui nada o fato de ficar sujeito, na área de segurança, ao general Braga Netto”. O governador esconde o verdadeiro motivo da intervenção.

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Michel Temer decretou a medida com base no inciso III, do art. 34, da Constituição da República, e já advertiu, “farei cessar a intervenção, no instante em que se verifique, segundo os critérios das Casas Legislativas, que há condições para votação” – trata-se da votação de sua proposta, já reformada, de reforma da Previdência. Pura demonstração de poder. Um recado ao Congresso Nacional, aos governadores todos e ao próprio judiciário. Estabelece vinculação – desnecessária? – entre “condições para votação da reforma” e continuidade ou cessação da intervenção. Se a intervenção pode cessar por motivos distintos ao que lhe deu causa, onde está, afinal, o alegado “grave comprometimento da ordem pública” que a fundamenta? O “grave comprometimento da ordem pública” termina quando houver maioria para aprovação das mudanças nas regras da Previdência Social.

Para completar o quadro, o prefeito Crivella, ainda em férias na Europa, limitou-se a agradecer e a parabenizar Michel Temer pela “ajuda ao Rio”, lamentando que a intervenção não tivesse sido decretada antes, quando ele já havia pedido – em setembro do ano passado, na ocasião do Rock in Rio.

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Entre o desafio de compreender o que deve ser considerado “não trivial” durante o reinado de Momo (ou o que pode ser considerado aceitável no quotidiano da guerra em que se transformou a segurança pública no Rio) e o exercício analítico para decifrar o que serviu de motivo para o governo federal decretar a medida e, enfim, a perplexidade diante do “asilo europeu” do prefeito, em momento ultrassensível para qualquer teste de segurança pública, fica a certeza de que os governos do MDB (até ontem, PMDB) fracassaram completamente na gestão da segurança pública do estado. Neste carnaval, governador e prefeito fora da cidade. Ausência que, a rigor, não é novidade. “Falha (da segurança) nos dois primeiros dias (do carnaval)”, segundo o próprio Pezão, reforço de policiamento na sequência, admissão de erros e despreparo.

Os argumentos do governador se comunicam com o medo da classe média alta, algo simbolizado por “acampamentos” na zona sul, “invasão” no aeroporto ou pela intensa vazão do fluido excretório sobre vagões do transporte privatizado, caro e ineficiente que o trabalhador tem de suportar no dia-a-dia da batalha pela sobrevivência. Alguma coisa está fora do lugar, mas não é a bala perdida de um fuzil que atinge a criança no ventre da mãe. Para o tenente-coronel do Exército, Durval Lourenço Pereira, o fundamento da intervenção é bem outro: “neste mês de fevereiro, a escalada da violência no Rio de Janeiro atingiu níveis inauditos”, quando três das principais linhas de transporte da capital tiveram de ser fechadas por causa de tiroteios entre polícia e traficantes (Folha de S.Paulo, 17/02/2018 – “O Haiti não é aqui”).

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A violência no Rio de Janeiro é real e assombrosa, mas não é maior do que a registrada em outros estados brasileiros. Em 2016, a taxa por 100 mil habitantes de mortes violentas intencionais (MVI), categoria que abarca homicídio doloso, roubo com morte, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais, em serviço ou fora dele, foi de 64 em Sergipe, 56,9 no Rio Grande do Norte, 55,9 em Alagoas e de 50,9 no Pará. Para o Rio de Janeiro, a taxa foi de 37,6, ainda menor que a do estado de Pernambuco, Acre, Goiás e Ceará (dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017, Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP). É disso que fala Arthur Trindade, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília – NEVIS/UnB, ao lembrar que “o Rio de Janeiro não tem a pior situação de homicídios no Brasil”. Por isso, segundo ele, “não foram critérios relacionados a crimes e homicídios” que podem ter determinado a medida de intervenção. Para o professor da UnB, “o que dá notícia é dizer que morreu gente no carnaval do Rio e não no carnaval de Juazeiro” (Deutsche Welle Brasil, entrevista, 16/02/2018). Sim. O Rio é a “cobaia na vitrine” para os experimentos eleitoreiros do desgoverno federal e do MDB.

Sem dúvida alguma, em tempos de pós-verdade, o sucesso das operações de intervenção no palco da cidade do Rio vai depender, em boa medida, da cobertura e dos holofotes da mídia dominante. Ao menos até o mês de outubro. Finda a intervenção ou passadas as eleições, tudo voltará ao statu quo ante. O Exército não é órgão gestor da política de segurança interna e não tem legitimidade democrática para colocar em execução um projeto de administração pública nessa área. E o Exército, óbvio, é o primeiro que não aceita esse papel. Sabe que sua presença é provisória, temporária, de curto prazo. Uma intervenção federal dessa natureza vai, por exemplo, reduzir confrontos entre facções do tráfico, diminuir o tiroteio, apreender fuzis. “Vai espalhar as baratas” – disse a professora Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense. Pode representar uma trégua e melhorar a percepção de segurança da população, mas não é gestão de segurança, não substitui o governo eleito para o cumprimento dessa função. Por isso é importante chamar atenção para o fato de que o acordo democrático foi gravemente rompido pelo governador do estado do Rio. O povo não o elegeu para recusar as responsabilidades do cargo. É grave a situação do Rio, mas não é verdade que está além da possibilidade de governo, da capacidade de controle da administração pública. Pezão já renunciou, de fato, ao mandato de governador do Rio de Janeiro.

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Um projeto de governo para a segurança, desde que houvesse vontade política e lealdade ao compromisso assumido com o povo fluminense, deveria contar com a atuação conjunta de especialistas, inteligência policial, gestores e movimento social. Deveria articular ações do sistema de justiça (juízes, promotores e defensores públicos) e da administração da cidade. Incorporar o sistema educacional, o sistema de saúde, transporte, moradia, saneamento. Nenhum projeto, entretanto, terá êxito, se não envolver mudanças na estrutura policial, com enfretamento direto da corrupção e do tráfico de armas e drogas no interior das corporações policiais. O que define o crime organizado é exatamente a participação de agentes do Estado – se há crime organizado no Rio é porque há envolvimento desses agentes. No Rio, como na maioria dos demais estados brasileiros, o Ministério Público não tem exercido de forma adequada o seu papel de controle externo da atividade policial. O “combate à corrupção”, foco preferencial de atuação do MP, não chegou às polícias.

Há muito que não se pensa a segurança pública fora da lógica da troca de tiros. Nas prisões – superlotadas – estão os jovens pobres, quase todos pretos, atraídos pelo negócio lucrativo do tráfico de drogas, enquanto que o homicídio e o estupro não são sequer investigados de forma razoável. A guerra entre facções do tráfico, a criminalidade e a violência policial são apresentadas como algo que está fora do alcance de uma gestão típica de segurança pública – essa é a desculpa de Pezão. Daí o apelo constante e generalizado ao emprego do Exército em questões de ordem pública. O general Villas Bôas, no final do ano passado, manifestou preocupação com a “utilização excessiva” dos militares para cumprimento de ações que competem aos governos locais. “Só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas já foram usadas 3 vezes em 18 meses”. E arrematou o general: “a segurança pública precisa ser tratada pelos estados com prioridade zero” – o que certamente quer dizer alguma coisa antes da prioridade número um. Agora, no entanto, a situação é diferente. A medida é ainda mais forte. Não se trata de parceria ou de compartilhamento dessas ações, mas de uma intervenção, a primeira desde 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição em vigor. O general Braga Netto passa a exercer o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública. Ele sabe dos riscos envolvidos. Riscos para a população, sobretudo para os jovens pobres e negros das comunidades e para os próprios militares. Não há argumento que justifique a continuidade da utilização do Exército no controle da segurança pública dos estados. Não é mais possível aceitar as desculpas dos governadores, as vistas grossas dos juízes e a omissão dos promotores de justiça em relação aos abusos e à violência policiais. Numa palavra, falta governo.

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Vem a lembrança da fala de Torquato Jardim, em outubro do ano passado, que gerou fortes reações. Entre outras afirmações, o ministro da justiça disse que o comando da PM no Rio está associado ao crime organizado; que a PM do Rio faz “acerto com deputado estadual e o crime organizado e que comandantes de batalhão são sócios do crime organizado”. Na ocasião, um dos mais veementes críticos de Torquato Jardim foi o então presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, atualmente preso por suposto envolvimento com esquema de corrupção “monumental” – segundo a subprocuradora geral da República, Cláudia Sampaio Marques. Vale perguntar: quando é que as investigações chegarão às cúpulas da PM do Rio? A intervenção federal terá alguma coisa a dizer sobre isso?

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