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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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A trans de barba e o LGB sem o T

O problema é que o corpo trans não cabe no espelho. Ele é a rachadura que devolve ao social a sua própria máscara

Nos últimos tempos, ressurgiu nas redes e nos debates públicos uma tentativa de fatiar a sigla LGBTQIA+, sob o argumento de que “as pautas trans confundem o movimento”. É o movimento LGB-sem-o-T — uma nostalgia reacionária por um tempo em que o corpo ainda parecia obedecer ao modelo, e o desejo, ao binarismo.

Mas essa “reclamação” não é nova. É o retorno do arquétipo da pureza, disfarçado de racionalidade. A tentativa de higienizar o movimento é, na verdade, o desejo inconsciente de restaurar o espelho que refletia apenas o reconhecível — o “homem gay viril”, a “mulher lésbica feminina”, todos dentro do espectro tolerável do olhar cis.

O problema é que o corpo trans não cabe no espelho. Ele é a rachadura que devolve ao social a sua própria máscara.

A mulher trans de barba encarna esse impasse. Ela rompe com o que a cultura entende por coerência visual e por “ordem simbólica” — uma mulher deve parecer mulher, um homem deve parecer homem. Quem não lembra da “bixa” de bigode performada por Fred Mercury em alusão ao Masculinismo que excluía os efeminados e as travestis do movimento gay branco brasileiro? É aí que o desconforto explode: o corpo deixa de ser signo e vira simulacro.

No sentido deleuziano, o simulacro não é imitação: é subversão de um corpo que expõe o truque do modelo.

É a imagem que grita: “A verdade é tão natural quanto nossas plásticas e nossas heranças monarquistas.”

Ao ver uma mulher trans de barba, o conservador — e parte dos grupos de esquerda à direita, assimiladas — não se irrita com a barba em si, mas com a perda da ilusão de controle sobre o corpo e seus signos. Essa imagem devolve à sociedade o que ela tenta negar: que gênero é, antes de tudo, uma operação de poder, não de essência.

A barba se torna, então, uma metáfora política — o Real que resiste à estética da pureza, o retorno do suprimido no campo do visível.

Quando o “LGB-sem-o-T” tenta se afirmar como pureza, não faz senão repetir o gesto mais antigo do patriarcado: separar os corpos “legítimos” dos corpos “errados”.

O que ameaça não é o corpo trans, mas o desarranjo ontológico, epistêmico, estético e quiçá biológico, que ele provoca.

É o fim da crença num arquétipo fixo, e o início da era dos simulacros — corpos que não repetem, mas inventam o humano de novo.

Por isso, a mulher trans de barba não é um “excesso”.

Ela é a tradução viva da metamorfose: um corpo que pensa, que filosofa, que não se dobra.

O medo que ela provoca é o medo da liberdade — aquela que nenhuma sigla, por mais recortada, poderá jamais conter.

No fim, talvez a sigla nunca tenha sido sobre letras, mas sobre vida. O L, o G, o B, o T e o I, quando respiram juntos, formam algo maior que identidades — formam humanidade. Porque é de carne, desejo e linguagem que somos feitos, não de códigos genéticos simplificados por quem mal estudou biologia, mas se arvora em policial de cromossomos. Que descansem, enfim, os fiscais do DNA: o mundo não precisa de guardiões da pureza, mas de quem saiba olhar o outro e reconhecer ali a beleza inquietante da diversidade que nos funda.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.