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      Sara York

      Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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      A transfobia de Estado: dos direitos das crianças trans à deputada federal

      O Brasil vive um momento decisivo – e preocupante – no que diz respeito aos direitos da população trans

      Erika Hilton (Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados)

      O Brasil vive um momento decisivo  –  e preocupante  – no que diz respeito aos direitos da população trans, especialmente quando o assunto envolve crianças e adolescentes. O debate sobre o reconhecimento e a proteção de identidades trans desde a infância tem esbarrado não apenas em preconceitos sociais, mas também em decisões institucionais que reafirmam a exclusão.

      O mais recente episódio dessa realidade foi protagonizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que publicou uma resolução restringindo o acesso de crianças e adolescentes à terapia de bloqueio hormonal para fins de transição de gênero. A medida, que aguarda publicação oficial, veda o uso desses medicamentos em menores de 18 anos, autorizando-os apenas em casos de puberdade precoce ou doenças endócrinas específicas.

      Segundo o CFM, a decisão foi motivada por preocupações com possíveis arrependimentos e efeitos colaterais irreversíveis. Contudo, a justificativa esbarra na ausência de dados científicos robustos que sustentem tais temores. Para especialistas e ativistas, a medida representa mais do que uma simples precaução médica: ela escancara o avanço de uma transfobia institucionalizada que insiste em tratar a existência trans como uma exceção, e não como uma expressão legítima da diversidade humana.

      Essa decisão do CFM é apenas a face mais recente de um fenômeno mais amplo e estruturado: a transfobia de Estado.

      Transfobia de Estado: quando a burocracia se torna violência

      A transfobia de Estado se manifesta quando estruturas governamentais  – sejam leis, serviços públicos, normas burocráticas ou até ações diplomáticas  – negam reconhecimento, dificultam o acesso a direitos ou deslegitimam a existência de pessoas trans. Essa prática pode se expressar tanto pela ausência de políticas inclusivas quanto pela recusa em reconhecer nomes e gêneros em documentos oficiais, além de manter barreiras sistemáticas no acesso à saúde, à educação e à justiça.

      Muitas vezes, essas violações ocorrem de maneira velada, fantasiadas de procedimentos burocráticos ou justificadas sob a aparência de cautela científica, como no caso da resolução do CFM. Outras vezes, a violência é escancarada, como denunciou a deputada federal Erika Hilton, que teve sua identidade de gênero violada pela embaixada americana ao solicitar um visto diplomático. Mesmo apresentando documentos oficiais brasileiros que a reconhecem como mulher, Hilton foi registrada como homem pelas autoridades consulares, sem aviso ou consentimento.

      "Isso é uma transfobia de Estado e mais do que isso, um incidente diplomático. O meu registro civil me reconhece enquanto mulher, os meus documentos me reconhecem enquanto mulher e, por uma concepção da mente do presidente dos Estados Unidos, a embaixada se sente autorizada a violar este meu direito", declarou Hilton.

      Casos como o de Erika não são isolados. Eu mesma, autora desta matéria, vivi situação semelhante ao embarcar pela Delta Airlines nos Estados Unidos. Apesar de apresentar documentos oficiais com meu nome e gênero femininos, fui tratada como "Mr." por um funcionário da companhia, que ignorou deliberadamente as informações corretas. Um episódio que, além de constrangedor, expôs o preconceito institucional mascarado de "procedimento padrão".

      O impacto da exclusão: muito além da burocracia

      A transfobia, em suas múltiplas faces, não é uma novidade. Ela se manifesta na forma de exclusão social, no estigma, no preconceito velado ou declarado  –  e, principalmente, nas estatísticas de violência e mortes que fazem do Brasil um dos países mais letais para pessoas trans no mundo.

      Quando falamos de transfobia de Estado, falamos de uma engrenagem que não apenas dificulta o acesso a direitos, mas também reforça o sofrimento e a vulnerabilidade das pessoas trans desde a infância. A ausência de políticas públicas adequadas, a negligência nos serviços de saúde e educação e a recusa de reconhecimento legal não são apenas falhas administrativas, mas escolhas políticas que afetam diretamente a sobrevivência e a dignidade dessa população.

      O caso das crianças trans ilustra bem esse cenário: negar o bloqueio hormonal sob o argumento de "proteger de arrependimentos" é ignorar a realidade de jovens que, sem o acesso a tratamentos adequados e a suporte médico, ficam expostos a sofrimento psicológico, exclusão social e, em muitos casos, ao suicídio.

      O que está em jogo não é um tratamento  –  é cidadania

      A transfobia de Estado não se limita a episódios isolados; ela é parte de um sistema que se recusa a reconhecer identidades trans como legítimas, e que, ao fazê-lo, reforça ciclos de exclusão, sofrimento e violência.

      Discutir a transfobia de Estado é discutir democracia. Quando o Estado, seja pela ação ou pela omissão, permite ou incentiva práticas que desumanizam pessoas trans, ele falha em sua missão básica de proteger a dignidade humana e assegurar direitos. Combater essa realidade exige mais do que boas intenções: exige mudanças estruturais, compromisso político e, sobretudo, coragem para enfrentar uma cultura que insiste em tratar a diversidade de gênero como um problema a ser eliminado, e não como parte inegociável da condição humana.

      Enquanto decisões como a do CFM forem tomadas sem escuta qualificada, sem diálogo com a ciência e sem consideração pela vida concreta das pessoas trans, o Estado seguirá alimentando uma máquina de exclusão que transforma histórias e trajetórias humanas em meros números  –  números que, ano após ano, engrossam as trágicas estatísticas da violência de gênero no Brasil.

      Nem só de XX e XY vive o homem!

      Pessoas intersexo, ou seja, aquelas que nascem com variações corporais. que não se encaixam nas normas binárias de "macho" ou "fêmea"  –  incluindo diferenças nas genitálias, cromossomos, hormônios ou características sexuais secundárias  –  são frequentemente submetidas a procedimentos cirúrgicos compulsórios ainda na infância. Essas intervenções, realizadas sem o consentimento da criança e muitas vezes baseadas apenas na aparência dos órgãos genitais, têm como objetivo forçar o corpo a se adequar às expectativas sociais de um sexo binário.

      Tais cirurgias, além de violarem o direito à integridade corporal, causam danos psicológicos, físicos e emocionais profundos, frequentemente descritos por pessoas intersexo adultas como experiências de mutilação. Essa prática, amplamente denunciada por organizações de direitos humanos, expõe a urgência de repensar a forma como a sociedade e o sistema médico tratam a diversidade corporal, reconhecendo que a existência intersexo não é uma anomalia a ser corrigida, mas uma expressão legítima da diversidade humana.

      Conversa entre pares

      Segundo a Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus, o debate sobre crianças e adolescentes trans não se encerra nas experiências vividas nessa fase da vida, mas atravessa o tempo e impacta diretamente as memórias e a saúde mental de adultos trans. De acordo com a pesquisadora, o não reconhecimento da identidade de crianças e adolescentes trans gera efeitos profundos e duradouros, que não apenas comprometem o bem-estar emocional desses sujeitos na infância, mas reverberam ao longo da vida, afetando diretamente a saúde mental de adultos trans.

      Jaqueline destaca a necessidade de compreender esse fenômeno como uma questão transgeracional, ou seja, como um problema que atravessa diferentes momentos da vida e se manifesta de formas específicas na trajetória de cada pessoa. A falta de acolhimento e reconhecimento durante a infância e adolescência não apenas adoece os sujeitos nesse período, mas deixa marcas que comprometem seu desenvolvimento, autoestima e estabilidade emocional na vida adulta.

      Para a professora, é fundamental que as políticas públicas e os debates sociais considerem essa perspectiva ampliada, que vai além do momento presente e reconhece os impactos estruturais do apagamento e da negação identitária, construindo espaços de escuta, validação e proteção desde a infância.

      Base científica ou moral?

      Na justificativa apresentada pelos conselheiros relatores, Bruno Leandro de Souza e Raphael Câmara Medeiros Parente, argumenta-se que os estudos disponíveis são inconclusivos quanto à eficácia das intervenções médicas na transição de gênero em jovens. A entidade também cita experiências de "destransição" –  quando pessoas trans decidem interromper ou reverter o processo de transição  – como motivo para o endurecimento das regras.

      Entretanto, uma meta-análise de 2021, que avaliou dados de cerca de 8.000 pessoas trans, aponta que o arrependimento em relação a procedimentos como terapia hormonal e cirurgias é inferior a 1%. Mesmo assim, o CFM afirma que novos estudos, como um realizado na Finlândia (2024), mostram um aumento do arrependimento especialmente entre jovens.

      O que dizem os especialistas e estudos recentes?

      Pesquisas recentes destacam benefícios significativos da terapia hormonal afirmativa de gênero (GAHT) para pessoas trans e não binárias, especialmente em termos de saúde mental. A revisão mais ampla e atualizada sobre o tema  –  baseada em estudos entre 2015 e 2021 – identificou que a GAHT:

      Reduz sintomas de depressão e ansiedade, e melhora a satisfação com a vida; Proporciona mudanças físicas alinhadas à identidade de gênero, como aumento da massa muscular em homens trans e desenvolvimento mamário em mulheres trans;

      Melhora a qualidade de vida, ao permitir que o corpo reflita melhor a identidade vivida;

      Em adolescentes, o uso de bloqueadores pode dar tempo para explorar a identidade antes de mudanças irreversíveis causadas pela puberdade.

      Por outro lado, a revisão também apontou riscos e desafios, como:

      Efeitos colaterais à saúde cardiovascular e óssea;

      Respostas inesperadas ao tratamento;

      Falta de dados robustos sobre pessoas não binárias e populações mais velhas;

      Complexidade na dosagem e acompanhamento clínico.

      O Colorado  (EUA) tem algo a ensinar!

      O que está acontecendo nos EUA, especialmente em estados como Colorado, é uma resposta direta a leis e ataques que tentam restringir os direitos de pessoas trans e os direitos reprodutivos.

      A autonomia e saúde inclusiva significam que cada pessoa tem o direito de decidir sobre seu próprio corpo  –  seja para acessar cuidados de saúde afirmativos de gênero (para pessoas trans) ou para acessar o aborto e cuidados reprodutivos sem medo de punição ou discriminação.

      O que o Colorado fez foi aprovar leis que:

      Protegem o acesso à saúde afirmativa de gênero  –  garantindo que pessoas trans, incluindo jovens, possam acessar tratamentos médicos de forma segura e que seguros de saúde cubram esses cuidados.

      Defendem os direitos dos pais  –  proibindo que tribunais tirem a guarda de crianças de famílias que apoiam sua identidade de gênero e o acesso a cuidados de saúde adequados.

      Protegem estudantes trans nas escolas  –  evitando que sejam forçados a esconder quem são, proíbe escolas de "destransicioná-los" forçadamente e trata práticas como usar nomes errados ou ameaças de gênero como formas de violência psicológica e bullying.

      Ampliam o direito ao aborto  – deixando claro na lei estadual que o aborto é um direito protegido e bloqueando tentativas de outros estados de punir médicos ou pacientes que realizem abortos no Colorado.

      Impacto sobre jovens e famílias no Brasil

      A decisão do CFM não será retroativa  –  ou seja, adolescentes que já fazem uso dos bloqueadores não serão afetados. Ainda assim, a medida preocupa famílias e especialistas em saúde pública que temem pelo impacto sobre jovens que enfrentam sofrimento psicológico associado à disforia de gênero.

      O debate também ecoa as ideias do livro "Irreversible Damage", de Abigail Shrier, que questiona o aumento de diagnósticos de disforia entre adolescentes, especialmente meninas. Shrier argumenta que a transição pode, em alguns casos, ser fruto de uma "contaminação social" e que intervenções médicas estariam sendo adotadas com pouca avaliação psicológica.

      Críticos da obra, no entanto, afirmam que ela promove desinformação e estigmatiza jovens trans, ao se basear principalmente em relatos individuais e ao desconsiderar a ampla literatura científica que apoia os benefícios da transição com acompanhamento médico adequado.

      Uma decisão que segue tendência internacional?

      O CFM cita países como Suécia, Noruega, Finlândia e Inglaterra  –  todos conhecidos por posturas liberais em direitos humanos  – que nos últimos anos também impuseram restrições ao uso de bloqueadores hormonais em adolescentes. As justificativas nesses países giram em torno da necessidade de mais estudos e da precaução com possíveis danos a longo prazo.

      Apesar disso, organizações de saúde como a Associação Americana de Pediatria, a Endocrine Society e a Organização Mundial da Saúde ainda reconhecem a terapia hormonal afirmativa como uma forma eficaz e ética de cuidado para pessoas trans, quando aplicada com avaliação multidisciplinar.

      Conversa segue!

      O embate em torno da nova resolução do CFM expõe um ponto de tensão entre prudência médica e garantias de direitos individuais. Enquanto o conselho defende uma postura mais cautelosa frente às incertezas científicas e relatos de arrependimento, profissionais da saúde, movimentos sociais e parte da comunidade científica alertam para o risco de negar acesso a tratamentos que podem ser, literalmente, salvadores de vidas.

      O embate em torno da nova resolução do CFM expõe um ponto de tensão entre prudência médica e garantias de direitos individuais. Enquanto o conselho defende uma postura mais cautelosa frente às incertezas científicas e relatos de arrependimento, profissionais da saúde, movimentos sociais e parte da comunidade científica alertam para o risco de negar acesso a tratamentos que podem ser, literalmente, salvadores de vidas.

      O Brasil vive um momento decisivo  –  e preocupante  – no que diz respeito aos direitos da população trans, especialmente quando o assunto envolve crianças e adolescentes. O debate sobre o reconhecimento e a proteção de identidades trans desde a infância tem esbarrado não apenas em preconceitos sociais, mas também em decisões institucionais que reafirmam a exclusão.icas que acompanham crianças e pessoas trans no Brasil. Se o problema é que não teve a atenção integral para problemas sociais, a solução não é proibir. A solução é melhorar o procedimento, garantir atenção total  –  e não esmagar a possibilidade para a esmagadora maioria dos casos. Como diz o parecer técnico da Associação de Médicas e Médicos pela Democracia, que anexamos, o CFM mostra muita preocupação com a destransição e pouquíssima atenção com a transição, reconhecendo que ela faz bem, como está na justificativa, e reconhecendo que a maioria dos casos de destransição ocorre por pressões externas, como familiares e sociais  –  e não por arrependimento." 

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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