Anteontem
Saudade e saudosismo, quem é quem na gaveta de nossas memórias?
Foi visita repentina, dessas que chegam sem avisar, sem tocar interfone. Era a saudade. A conversa embalou, virou viagem e quando a visita se foi, tão sutil quanto chegou, senti saudade da saudade.
Dona Saudade escapou, ficaram cheiros, toques, imagens. Do Furacão da Copa, do rock do Hojerizah, de um páreo noturno na Gávea.
É saudade boa, dessa que dá e passa. E depois que apruma, volta. Saudade no singular, porque saudade é uma de cada vez.
Saudosismo é diferente, mistura tempo e espaço, chega editado. Um concerto em que só vemos os melhores momentos. O bis e o aplauso sim, o descompasso e a vaia jamais. Saudosista de raiz tem certeza que o presente só não é pior que o futuro. Já os tempos idos, o outrora, que colosso!
Estou perto dos sessenta e quatro e, de vez em quando, lembro de alguns desses meus muitos anos. Conto pra você um trecho curto de um período nefasto para o nosso país. A ditadura prendia e torturava, já o pré-adolescente vivia em outro mundo.
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A vida melhorou lá em casa, em 1970.
Vovó Lili levou meus irmãos e eu para São Lourenço. Férias de verão no hotel Palácio. No parque das Águas, atração da cidade mineira, tinha pista de patinação, pedalinho, boliche. Lili botava em um pequeno envelope branco dinheiro trocado e dava a cada um depois do café da manhã. Era uma espécie de Bolsa-Férias, que ela renovava a depender do nosso comportamento.
A vida melhorou mais lá em casa, em 1971.
Meu pai, funcionário público, foi promovido no DNER. Junto com minha mãe, decidiu manter meus dois irmãos nas escolas públicas em que estudavam. Estavam bem adaptados e as notas eram boas. Já comigo, que ia entrar no ginásio, os planos eram diferentes.
A vida melhorou muito mais lá em casa, em 1972.
Meus pais escolheram por mim e para mim o Instituto La-Fayette, o mesmo colégio que meu pai estudara vinte anos antes. O La-Fayette era particular e muito maior que a escola Equador, pública, onde eu terminara o primário aos trancos e barrancos. O La-Fayette tinha campo de futebol (de sete na linha e um no gol), quadra coberta com piso de madeira. O Lafayette tinha laboratório de Química com tubos de ensaio, sala de Geografia com mapas de mármore em relevo, sala de Desenho com uma infinidade de compassos, esquadros e transferidores. O La-Fayette tinha a biblioteca da dona Gertrudes com o Tesouro da Juventude em capa dura e letras douradas.
A vida melhorou muito, mais muito, muito mais, em 1975.
O La-Fayette deixou de ser só de meninos. O outro colégio, o feminino, também na Tijuca, se uniu ao masculino. Num inesquecível mês de março desembarcaram das Variantes, Belinas e Opalas as novas estudantes. Também desciam apressadas de ônibus, táxis ou trazidas pela mão por papais bigodudos.
Saias cor de mar, blusas café com leite, branquíssimas meias três quartos e sapatos fechados de bico redondo, chamados de “sapato boneca”. As sardas mais lindas do Rio de Janeiro enfeitavam o rosto da Denise. Marcia prendia os fios cor de mel num rabo de cavalo. Sandra fazia tranças louras; o sorriso da Lizete era o mais bonito. Os olhos da Vanda os mais impressionantes: às vezes azuis, às vezes cinzentos. Lucia Helena continha os cachos com tiara. A gente disfarçava, mas não desgrudava os olhos das pernas da Renata. O mesmo com as Anas, toda belas. Ana Lucia, Ana Beatriz, Ana Silvia.
A vida quase piorou em 1976. Quase.
Novos inspetores chegaram com implacáveis punições. Enquanto os alunos disciplinados podiam jogar futebol e lanchar na cantina, os arruaceiros eram divididos: um grupo copiava em folhas de papel almaço textos intermináveis para melhorar a caligrafia, depois liam e reliam em voz alta. A outra banda de “maus elementos” enchia a lousa, de ponta a ponta, em contas de multiplicar ou dividir.
Indignada por ser chamada na diretoria, minha mãe fechou as sobrancelhas e até os vizinhos ouviram a descompostura: “A gente paga a escola com sacrifício, se você aprontar de novo, vai pro colégio interno! De padre! Lá, moleque ajoelha no milho, experimenta palmatória e reza até de madrugada. Ou você se comporta e estuda ou vai morar no seminário”.
Uma nota oito em Biologia me salvou do mais doloroso dos castigos: me afastar de minhas lindas colegas.
Passeio pelas memórias ao ouvir a conversa melancólica de dois amigos de rugas profundas e mais outro de testa congelada por botox.
Podiam ser três atores em um palco, ou três palhaços tristonhos num picadeiro. Nada disso, eram personagens de um sonho de uma noite fria da semana passada. Saudosos do saudosismo começaram assim a esvaziar a primeira garrafa em um armazém empoeirado.
- A molecada de hoje em dia não tem ideia do saudosismo de antigamente.
- Saudosismo bom era no nosso tempo.
- O Campari.
- O leite de onça.
- Cada broto...
- Broto não, sereia.
- Vocês perderam a memória? Princesa, majestade, cocota, no completo esplendor da formosura...
Os três silenciam, olham seus celulares. Então, é o meu que toca. São cinco e meia da manhã.
Anoto o sonho para não esquecer as pérolas e viro pro lado. Cedo demais, até para saudade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

