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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 61 anos de idade e 35 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Assim nascia uma cordilheira

Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto (Foto: Reprodução)
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Apresento a vocês a melhor e mais linda mãe do universo, a Therezinha

- Qual o irmão do seu irmão que não é seu irmão?

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- Hum...dá uma pista.

- Que pista, bota a caixola para funcionar, garoto.

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Therezinha adorava pegadinhas, adivinhações. Trunfos para dias de chuva, às vezes de breu, quando os apagões tinham nome de blecaute. No escuro não se jogava dominó, não se brincava de varetas ou de burro em pé.

 Era preciso acalmar os três peraltas, sempre inquietos e famintos, naquele apartamento de sessenta metros quadrados em que se comprimiam sala, cozinha, copa, banheiro, dois quartos e as tais dependências de empregada.

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Com doses iguais de amor e humor, minha mãe cuidava dos 3 filhos juntos. E também separados. Tudo ao mesmo tempo. Dava banho em um, comida para outro e uma bronca no terceiro. Ali, entre o banheiro e o corredor. Em minutos, as posições se invertiam, enxugava quem saía do chuveiro, ensaboava quem entrava, mandava o terceiro comer tudo, ou como preferia dizer:

-Limpa o prato, menino. 

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Havia momentos mais amenos. Se alguém estava resfriado e não podia brincar na rua, ela cobria a cama com almofadas e travesseiros, jogava um cobertor por cima e assim nascia uma cordilheira. Alisava com as mãos outra parte da manta e surgiam vales, colinas, desertos, planícies. Aí espalhava pelo terreno soldadinhos de chumbo e cavalos. Uma lanterna criava o suspense. Plantas artificiais, na época em moda, viravam bosques e florestas. Camufladas pelo verde, carroças com mantimentos e armas abasteciam a tropa. Do outro lado, no alto das montanhas, índios prontos para o encontro sangrento. A preparação nos consumia tanto tempo e emoção que o desfecho do combate pouco importava. 

Minha mãe sabia brincar. Minha mãe gostava de brincar. Minha mãe brincava de se divertir.

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Jogava futebol de botão, sinuca, totó, pingue-pongue; cartas, dama e cabra-cega também.

Batalha naval, banco imobiliário, víspora? Era com ela mesmo.

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Era afiada na forca, no pontinho, no jogo da velha.

Nunca desanimou com filho que não estudava, tomava a lição de todos. Repetia, repetia. Incansável. Porque brincadeira não cansa e ela ensinava brincando.

Os afluentes da margem direita do Amazonas. Javari, Purus, Juruá...

A tabuada.  

A raiz quadrada.

Sinônimos, antônimos e coletivos.

Você, leitor ou leitora, sabe o coletivo de borboletas?

Minha mãe sabia.

Antes das provas de Geografia tínhamos que dizer as capitais, do Rio Grande do Sul ao Amapá, do Acre ao outro Rio Grande. Nossa mãe-professora cultivava uma didática só dela, que nos fazia decorar os “Conhecimentos Gerais”. 

Para quem esquecia a capital dos gaúchos vinha uma dica, “quem não está triste, está?” Se a dúvida fosse no Pará, lá vinha ela, “qual o som dos sinos?” Em Roraima, “quem usa óculos é porque não tem?”

Com as capitais ficou fácil e na adivinhação do início deste texto também. Se você tiver mais de um irmão, como eu, a resposta é você mesmo! Sobre o coletivo, anote aí: borboletas voando em grupo formam um panapaná.

Para estudar ou brincar, que adolescente ou criança não adora receber os amigos em casa? Minha mãe curtia mais do que a gente. E eles amavam a anfitriã. Dependendo da compra do dia no supermercado Mar e Terra, de Vila Isabel, tinha misto quente com Sustincau, cachorro-quente com Grapette e pastel de queijo com Ki Suco. 

Uma noite, depois da novela, quando achou que dormíamos, ela foi para janela do nosso quarto com os olhos molhados. Mirava longe, sem nada ver. Chorou de soluçar e enxugou o rosto com as mangas do penhoar bordô. 

Levantei, cheguei perto, botei a mão no ombro coberto com o tecido macio e sem nada perguntar, ouvi a resposta.

- Tua mãe tá bem, chorar às vezes é bom. Você não, que é homem e homem não chora. Entendeu? Todo casal tem problema, entendeu também? E eu e seu pai somos um casal como os outros, entendeu?

- Entendi, mãe. Mas que problema?

- Problema de adulto.

- Por que o papai tá roncando e a senhora tá chorando?

- Não tô mais, agora tô conversando com meu caçula que já tem 7 anos.

- Vou fazer 8.

- Meu filho, tá vendo aquelas luzinhas?

Eram milhares. À esquerda, como vaga-lumes, brilhavam pelos morros dos Macacos e do Turano, em frente se espraiavam até o Maracanã, Uerj e Mangueira. Do lado direito a gente via as lâmpadas pela Tijuca, Salgueiro, Andaraí, Aldeia Campista.

- Tô vendo. O que têm as luzinhas?

- Em cada uma delas existe uma casa. Em cada casa uma família. Em cada família um problema. Mas em cada uma delas, grande ou pequena, tem uma luz que está apagada.

- Qual é?

-  É a do quarto das crianças, que já estão dormindo.

Minha mãe, a Therezinha, me deu um beijo, me botou na cama e saiu fechando a porta com cuidado.

Meus dois irmãos permaneciam quietos. A gente teve medo e rezou numa mesma voz.  Uma Ave Maria para ela e um Pai-Nosso para o nosso pai, quem sabe assim eles desistiam de se desquitar, ao contrário da Dulce e do Gervásio, nossos vizinhos. Foi uma longa noite, mas no dia seguinte, nossos pais estavam falando da vida dos vizinhos, do preço do material escolar, da carne assada que ia para mesa no almoço.  

Seguiram falando, brigando e fazendo as pazes por 2 vidas.

Em 4 de setembro de 2011, comemoraram 57 anos de casados. Foi o último aniversário. Bodas, como gostavam de dizer. Ele se despediu primeiro e alguns anos depois ela nos disse adeus.

- Esta crônica faz parte do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, do Luis Cosme Pinto e da editora Kotter.

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