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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Banheiros, gênero e poder: a história de um espaço que vai muito além da porta

De ambientes de higiene a territórios de vigilância social, os banheiros públicos revelam muito sobre o controle dos corpos e as desigualdades de gênero

Bandeira trans (Foto: Antra/Divulgação)

Entrar em um banheiro parece um ato banal, mas, por trás das portas de madeira ou metal, existe um universo de regras sociais, políticas e históricas que moldam nosso comportamento. A divisão entre “masculino” e “feminino”, tão naturalizada, é uma construção relativamente recente: até o século XIX, banheiros públicos eram majoritariamente mistos, pois a segregação entre gêneros era mais restrita ao espaço doméstico. Curiosidade: em Paris, por exemplo, os primeiros “mictórios públicos” surgiram em 1830 e eram exclusivos para homens, pois as mulheres eram vistas como “anjos do lar” e não deveriam circular pelas ruas desacompanhadas.

Aliás, é em 1739, na Inglaterra, que foi criada uma das primeiras leis para regulamentar o uso de banheiros públicos. Curiosamente, os banheiros femininos só apareceram em larga escala mais de 100 anos depois, em 1852, no Crystal Palace, em Londres. Até então, mulheres que circulavam em espaços públicos precisavam recorrer a “chá houses” ou hotéis para usar sanitários, reforçando a ideia de que o espaço urbano era feito para os homens. Essa exclusão ajudou a criar um imaginário no qual a rua e os espaços coletivos eram perigosos ou impróprios para mulheres.

Com o avanço da urbanização, os banheiros tornaram-se espaços de vigilância moral e sexualidade. A arquitetura e o desenho desses ambientes reforçaram uma visão higienista e patriarcal: garantir a “segurança” feminina enquanto controlava seus corpos. Isso se reflete até hoje, especialmente em países que transformam banheiros em arenas políticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, os “bathroom bills” – leis que tentam barrar pessoas trans de usarem banheiros condizentes com sua identidade de gênero – colocam o banheiro no centro do debate sobre direitos civis.

No Brasil, o debate ganha contornos próprios. Para muitas pessoas trans, escolher entre o banheiro feminino ou masculino não é uma decisão baseada apenas em identidade, mas em segurança. A escolha, frequentemente, é uma estratégia de sobrevivência em um país que lidera índices de violência contra pessoas trans. “Banheiros não são apenas um espaço de uso comum, mas um reflexo de quem pode existir publicamente sem medo”, posso afirmar enquanto pesquisadora que estuda mídia, memória e corpos dissidentes.

Essa vigilância sobre o corpo feminino e dissidente também se manifesta na cultura popular. O banheiro feminino carrega um simbolismo curioso: além de espaço de intimidade, tornou-se sinônimo de camaradagem e até de redes de apoio. Filmes e séries reforçam essa imagem, enquanto o banheiro masculino costuma ser representado como um espaço de silêncio e distanciamento. Esse contraste não é neutro: ele mostra como os gêneros são performados até nos mínimos gestos.

Outro dado curioso: em grandes eventos, como estádios e shows, as filas dos banheiros femininos podem durar até 400% mais tempo que as dos masculinos. Essa desigualdade não é por acaso – a arquitetura desses espaços não considerou, historicamente, o tempo que mulheres levam para se despir de roupas mais complexas, trocar absorventes ou cuidar de crianças. Pesquisadoras chamam isso de “sexismo arquitetônico”.

Em um mundo que se abre cada vez mais para identidades não binárias e fluidas, novas soluções vêm surgindo: banheiros unissex, cabines individuais acessíveis e até projetos urbanos que repensam a noção de gênero na arquitetura. No entanto, o desafio não é apenas estrutural, mas cultural. O banheiro é um espelho da sociedade: se a rua ainda não é um espaço seguro para pessoas LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, o banheiro, que deveria ser um espaço de cuidado, torna-se um local de risco.

Assim, o debate sobre banheiros vai muito além da placa na porta. Ele questiona quem tem direito de existir no espaço público, quem merece proteção e quem é visto como ameaça. Em tempos de polarização, talvez um dos atos mais revolucionários seja criar ambientes de convivência que garantam o básico: segurança, acessibilidade e dignidade para todos.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.