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Carlos Lima

Economista, empregado da CAIXA, dirigente sindical da CTB-RJ e do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro e Organizador do Núcleo do RJ do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CES)

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Barroso encerra ciclo que afastou STF da classe trabalhadora

Entre a toga e o mercado

O ministro Luís Roberto Barroso em sessão plenária do STF - 09/10/2025 (Foto: Antonio Augusto/STF)

O ministro deixa o Supremo com a imagem de defensor da democracia ameaçada, mas também com o peso de ter liderado a guinada liberal que enfraqueceu a proteção social do trabalho no Brasil. O país agora precisa reencontrar a Constituição de 1988 e devolver à Justiça sua alma social.

Luís Roberto Barroso deixa o Supremo Tribunal Federal com uma biografia marcada por contrastes que refletem, em grande medida, as contradições da própria história recente do país. É inegável que cumpriu papel relevante na defesa da democracia quando esta esteve em risco. Foi voz firme contra o autoritarismo, defendeu a integridade das urnas eletrônicas e enfrentou o bolsonarismo em seus ataques à legalidade constitucional. Nessa frente, prestou um serviço importante à República e merecerá o reconhecimento histórico.

Mas essa trajetória não pode ser dissociada do contexto em que o STF, como instituição, falhou em proteger a democracia social quando ela começou a ser desmontada — ainda antes da ascensão neofascista. Quando o golpe parlamentar de 2016 destituiu a presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, o Supremo optou pelo silêncio cúmplice, legitimando, por omissão, a ruptura democrática que abriu as portas para a sequência de retrocessos. O afastamento de uma presidenta eleita, amparado em interpretações políticas e não jurídicas, representou um abalo profundo no Estado de Direito. Foi o momento em que o STF deixou de ser guardião da Constituição para se tornar árbitro complacente de um processo de exceção disfarçado de legalidade.

O mesmo tribunal que, anos depois, enfrentaria o bolsonarismo com firmeza foi o que, antes dele, assistiu passivamente ao desmonte da soberania popular e à ascensão de um governo ilegítimo — o de Michel Temer — que se encarregou de implantar a agenda neoliberal que o voto popular havia rejeitado.

A virada liberal e a ruptura com a Constituição Cidadã

Foi sob Temer que o Congresso aprovou, em ritmo de imposição, a Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467) — uma das mais profundas e regressivas da história. Essa lei não teria sobrevivido sem o amparo político e jurídico do Supremo, que chancelou, ponto a ponto, as alterações impostas ao mundo do trabalho.

Barroso foi um dos principais formuladores dessa inflexão liberal no interior da Corte. No julgamento da ADPF 324, de sua relatoria, e no RE 958.252 (Tema 725), o STF legitimou a terceirização irrestrita, inclusive em atividades-fim, rompendo com décadas de jurisprudência protetiva. O vínculo direto entre empregador e empregado, que a CLT tratava como núcleo de estabilidade social, foi dissolvido em uma teia de intermediações empresariais.

Em 2018, sob o mesmo impulso liberal, o Supremo validou o fim da contribuição sindical obrigatória (ADI 5794 e correlatas), medida apresentada como libertação individual, mas que na prática estrangulou financeiramente os sindicatos e reduziu a força coletiva da classe trabalhadora. O que se vendeu como “autonomia” foi, na realidade, a imposição de um isolamento que debilitou as organizações de base e enfraqueceu a resistência às reformas.

Em seguida, a Corte consolidou o princípio do negociado sobre o legislado (Tema 1046), legitimando acordos que restringem direitos previstos em lei sob a justificativa de “preservar empregos”. A partir daí, multiplicaram-se os contratos intermitentes, a pejotização e as formas precarizadas de vínculo — produtos diretos da aliança entre governo Temer, Congresso conservador e Supremo conivente.

O golpe parlamentar de 2016, a Reforma Trabalhista de 2017 e a Reforma Previdenciária de 2019, já sob Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, formam um mesmo ciclo histórico: o ciclo do desmonte neoliberal da proteção social. A cada etapa, o STF atuou não como contrapeso, mas como avalista jurídico do retrocesso.

O custo humano da modernização

Os efeitos dessa virada são visíveis em toda parte. Segundo o IBGE, o país tem 38,8 milhões de trabalhadores informais e 16,1 milhões de pessoas subutilizadas — números que se sobrepõem, mas revelam a magnitude da precarização. Quase metade da população ocupada vive sem garantias trabalhistas básicas, sem férias, 13º salário, descanso remunerado ou contribuição previdenciária.

A retórica da “liberdade contratual” e da “eficiência econômica” serviu para mascarar o velho projeto de concentração de renda. Sob o disfarce de modernização, instalou-se a era da insegurança legalizada. O trabalho virou mercadoria barata, e a dignidade humana passou a depender da sorte ou da subordinação.

A mesma toga que defendeu a democracia política abençoou a desdemocratização econômica. O Supremo que reagiu ao autoritarismo louco e ensandecido foi o mesmo que legitimou o autoritarismo do capital financeiro. A “modernização” cantada por Barroso e seus pares não libertou ninguém — apenas transferiu o custo da crise para os ombros do trabalhador.

O paradoxo do ministro liberal e progressista

Barroso encerra sua passagem pelo STF como símbolo de uma contradição de época. Foi o ministro que enfrentou os golpistas e defendeu a institucionalidade, mas também o jurista que ajudou a desmontar os alicerces sociais da Constituição. Representou o liberal progressista que acredita em direitos civis, mas desconfia da intervenção estatal e da organização coletiva.

Sua trajetória expressa o dilema de uma elite jurídica que combate o autoritarismo político, mas aceita o autoritarismo do mercado. Ao longo dos últimos anos, o Supremo — sob sua influência — se afastou do povo e se aproximou das corporações econômicas, reinterpretando o Direito do Trabalho como mero instrumento contratual. Essa inversão ideológica produziu uma justiça tecnocrática, que fala em eficiência enquanto o país se desindustrializa e o trabalhador perde o chão.

Barroso foi, sem dúvida, um homem de Estado. Mas foi também o ministro que ajudou a transformar a Corte em instituição de validação do neoliberalismo brasileiro. Sai com o respeito dos democratas formais, mas com o peso de ter enfraquecido a democracia material — aquela que se mede pelo emprego, pelo salário e pela dignidade de quem trabalha.

A tarefa histórica do reencontro com a Constituição de 1988

A vaga aberta pela sua aposentadoria não é apenas administrativa: é uma encruzilhada histórica. O Brasil precisa decidir se continuará a trilhar o caminho do liberalismo jurídico ou se retomará o rumo do constitucionalismo social inaugurado em 1988.

A Constituição Cidadã segue viva, e nela estão o valor social do trabalho, a função do Estado como planejador do desenvolvimento e o dever de reduzir desigualdades. O Estado Democrático de Direito só é legítimo se for também Estado Social de Direito. Defender a Constituição significa defender o povo que nela depositou sua esperança — e isso exige reverter o desmonte iniciado em 2016 e consolidado nas reformas de Temer e Bolsonaro.

O novo ministro que vier a ocupar essa cadeira deve representar o reencontro do STF com o Brasil real: o Brasil que trabalha, produz e sustenta o país sem voz nem vez nos tribunais. Precisa compreender que o Direito não é neutro — tem lado, e esse lado é o da dignidade humana e da justiça social. O Supremo deve voltar a ouvir o chão de fábrica, a sala de aula, o balcão e o volante. Só assim recuperará o sentido público de sua existência.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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