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Helio Doyle

Hélio Doyle é jornalista, foi professor da Universidade de Brasília e secretário da Casa Civil do governo do Distrito Federal

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Bolsonaro não gosta de ser presidente, ele quer ser ditador

"O projeto político de Jair Messias Bolsonaro e de seus filhos é dar o golpe nas instituições democráticas, assumir mais poderes em detrimento do Legislativo e do Judiciário e controlar os meios de comunicação", diz o jornalista Hélio Doyle

Bolsonaro convoca sua marcha sobre Roma
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Por Hélio Doyle (originalmente publicado no Congresso em Foco) – O projeto político de Jair Messias Bolsonaro e de seus filhos é dar o golpe nas instituições democráticas, assumir mais poderes em detrimento do Legislativo e do Judiciário e controlar os meios de comunicação.

O plano está desenhado e hoje, felizmente, é grande o número de pessoas que saíram do ceticismo inicial e já veem que a democracia corre perigo com o capitão que comanda generais.

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Há poucos dias, perguntado se queria dar um golpe, Bolsonaro respondeu que quem quer dar um golpe não conta. Não negou.

O polêmico e perigoso comportamento de Bolsonaro diante da pandemia do coronavírus é parte de seu projeto de golpe. Não é só desequilíbrio mental, ignorância, irresponsabilidade e desprezo pela vida. Não é só preocupação com o futuro da economia e em manter o apoio de empresários aliados para se manter no poder. É tudo isso, mas também parte de um projeto político estruturado.

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Neste artigo, procuro mostrar quais são os antecedentes desse projeto político, como Bolsonaro tem agido para conseguir seu objetivo e como pretende consumar o golpe nas instituições democráticas.

1. “Ele nunca escondeu quem é”

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De uma coisa não podem acusar Jair Bolsonaro: de ter escondido das pessoas quem ele é, o que pensa e o que pretende para o Brasil. Bolsonaro é transparente desde que se tornou um homem público, ao liderar movimentos de reivindicação salarial no Exército e ser acusado de planejar ações terroristas. Foi obrigado a pedir reforma e enveredou na vida política, como vereador, em 1988.

Bolsonaro sempre se revelou um desequilibrado, provavelmente portador de um transtorno mental que não sabemos qual é. Seus atos, seu comportamento e até seu olhar revelam isso, e inúmeros psicólogos e psicanalistas já arriscaram considerar que possa ser psicopata, sociopata, maníaco-depressivo, paranóico, megalomaníaco, narcisista e outras qualificações.

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Sabe-se que o encerramento prematuro de sua carreira militar é motivo de enorme frustração, pois desde novo ele ansiava comandar tropas, dar ordens e ser obedecido sem questionamentos. Teria sido expulso do Exército por indisciplina e inadequação à carreira militar, mas foi salvo por um acordo para que pedisse para sair e evitasse a desonra explícita.

Ser tratado como deputado irrelevante durante 28 anos é a razão maior de seu ressentimento diante da política e dos políticos. Bolsonaro foi um deputado medíocre, sem atuação no plenário, nas comissões e nos bastidores, ignorado por jornalistas, tratado por colegas como figura folclórica e tosca, que só aparecia ao soltar frases a favor da ditadura e de torturadores.

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Como não tinha participação nos núcleos decisórios do Legislativo, não estava entre os beneficiados por empresários inescrupulosos que encharcavam as mãos de parlamentares com dinheiro ilícito. Tinha de se contentar com a corrupção típica do baixo clero: empregar parentes, amigos e milicianos; fraudar a verba indenizatória com notas frias; ganhar “extras” com as “rachadinhas” no gabinete; e receber contribuições ilegais para o caixa dois nas eleições, o que, aliás, o colocou entre os beneficiados pela “lista de Furnas”. Poucos empresários, de extrema-direita ou fabricante de armas, colaboravam com o sustento dele e dos filhos.

Como todo frustrado e ressentido, Bolsonaro, pelo que dizem alguns que o conheceram melhor, sonhava com a revanche: o dia em que militares e políticos tivessem de se submeter a seu comando e passasse a ser respeitado pelos grandes empresários. Almejava também se vingar dos jornalistas que o desprezavam.

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Às frustrações e ressentimentos que atormentam Bolsonaro ainda se somam os traumas familiares, causados por relações tempestuosas, separações conflituosas e dificuldades na convivência com os filhos, e que explicam desde a interação complexa com o filho Carlos até a misoginia e a fixação por narrativas repletas de imagens que remetem a casamento, sexo e atributos físicos das chamadas partes íntimas.

A propalada veneração à família, constante em seus discursos, pode ser uma compensação às vicissitudes por que passou, mas pode ser também só um discurso para agradar conservadores e fundamentalistas religiosos. Se a prática é o critério da verdade, porém, Bolsonaro e família tradicional cristã não são compatíveis.

2. “Bolsonaro sempre defendeu a ditadura”

As complicações mentais, existenciais e familiares de Bolsonaro não fazem com que ele seja apenas um louco desvairado que não sabe o que faz nem tenha noção das suas repercussões. E não o absolvem de nada. O capitão indisciplinado que se tornou comandante-em-chefe das Forças Armadas tem, convivendo com sua loucura, um pensamento político estruturado e um projeto de poder coerente com as convicções que sempre manifestou. E que são de conhecimento público há mais 30 anos.

Bolsonaro sempre defendeu a ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, elogiou os generais-presidentes e seus governos e exaltou os que torturaram e assassinaram militantes políticos, oposicionistas, insatisfeitos e até quem nunca se manifestou contra o autoritarismo. Por várias vezes demonstrou admiração por ditadores sanguinários e corruptos, como Augusto Pinochet, do Chile, e Alfredo Stroessner, do Paraguai, entre outros. Aplaudiu o autogolpe dado por Alberto Fujimori no Peru e até mesmo a ascensão ao poder do coronel Hugo Chávez na Venezuela — imaginou que, por ser militar, o líder bolivariano seria de direita.

Já pré-candidato a presidente, o deputado repetiu incessantemente suas convicções autoritárias e repressivas. Chegou a homenagear um torturador notório ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Seus primeiros seguidores fanáticos repetiam os mantras contra a democracia e pela restauração dos governos militares como solução para os inúmeros problemas do país, em especial para combater a corrupção e a criminalidade.

Parecia, no princípio, um candidato da extrema-direita em busca de espaço político, a réplica brasileira dos políticos e antipolíticos ultraconservadores que ganhavam espaço em outros países. Não era o candidato dos que, desde as manifestações de 2013 e especialmente desde a eleição de 2014, articulavam a destituição de Dilma Rousseff e o fim das gestões comandadas pelo PT. Era o que se denominava um outsider, o candidato à margem dos velhos esquemas políticos.

Dilma foi derrubada do governo por uma ampla coalizão política e empresarial de centro e centro-direita que soube mobilizar grande parcela da população e cuja maioria dos integrantes havia apoiado ou participado —muitos, entusiasticamente —dos governos dela e de Lula. Esses grupos viram que existiam condições objetivas e subjetivas para assumir diretamente o poder, sem se submeter à hegemonia petista.

A coalizão contra Dilma, o PT e a esquerda recorreu ao impeachment, instrumento constitucional que permite um julgamento fundamentalmente político do presidente, sendo acessória a argumentação técnica e jurídica, usada para legitimar a destituição. Se o presidente não tem maioria parlamentar, o impeachment é aprovado. Se tem maioria, como Donald Trump, é rejeitado. Não importa o crime cometido.

A coalizão constituída com o propósito específico de derrubar a esquerda do poder recebeu o respaldo ativo dos Departamentos de Estado e de Justiça dos Estados Unidos, cujo governo não escondia a preocupação com a crescente inserção internacional do Brasil e com a presença crescente de empresas brasileiras em outros países. Não estavam gostando também da participação do Brasil na formação de alianças alheias e até contrárias aos interesses dos Estados Unidos: os novos organismos multilaterais na América Latina, dominados por governantes à esquerda, e, sobretudo, o Brics, acrônimo para a união de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

O impeachment era favorecido por vários fatores, mas, sobretudo, pelos muitos erros da política econômica de Dilma e pelas pesadas denúncias de corrupção, que atingiam vários partidos, mas eram propositadamente concentradas no PT. A coalizão soube explorar ao máximo, com intensa cobertura da imprensa, as consequências das políticas governamentais equivocadas e a revolta da população diante da corrupção generalizada.

Papel fundamental para o sucesso do impeachment foi a atuação dos juízes e procuradores envolvidos nas operações contra a corrupção, em especial na denominada Lava Jato, comandada de fato, e ilegalmente, pelo então juiz Sérgio Moro. O que inicialmente parecia ser uma saudável e elogiável ofensiva contra corruptos de todos os matizes mostrou ser, com o tempo, uma operação política coordenada com o projeto da coalizão e dirigida a alvos escolhidos, sintonizada com interesses políticos e comerciais do governo estadunidense e com grande apoio da população cansada da corrupção.

O plano era colocar o vice Michel Temer na presidência, iniciar a execução de medidas econômicas ultraliberais de ajuste fiscal e dar uma guinada moderada na política externa, com o distanciamento de governos latino-americanos à esquerda e aproximação com os Estados Unidos. Depois, em 2018, eleger um político da coalizão para derrotar a esquerda, que dificilmente teria Lula como candidato, e dar prosseguimento a essas políticas. Temer e seu partido, o MDB, achavam que ele poderia ser o candidato.

Mas outros partidos também tinham seus candidatos e a coalizão funcionou como tal somente até a decretação do impeachment de Dilma. Temer logo foi acusado de corrupção, não conseguiu cumprir integralmente o que havia sido planejado, perdeu aliados e sua reeleição foi inviabilizada. Os partidos políticos que participaram da coalizão apresentaram vários candidatos à presidência em 2018. Dividiram-se pensando em voltar a se unir no segundo turno caso o PT chegasse lá, e assim, sem querer, começaram a viabilizar a vitória de Bolsonaro.

3. “Imagem falsa de antipolítico”

O então deputado Bolsonaro apoiou com estridência o impeachment, mas nunca se aliou aos que o comandaram . Procurou se distanciar do governo de Temer para ser coerente com seu discurso e imagem de outsider, adversário das velhas práticas e métodos políticos, inimigo visceral dos corruptos, militar preparado para enfrentar a violência e os criminosos. Manteve a linha de não se envolver com partidos, para ele apenas instrumentos para disputar eleições. Na pré-campanha, trocou o Patriota pelo PSL, depois de passar por outros sete partidos em sua vida política.

A ascensão de Bolsonaro deve-se em grande parte ao sentimento, de grande parcela da população, de desencanto e rejeição à política, aos políticos e aos partidos, disseminado a partir das manifestações de 2013 e intensificado diante das inúmeras denúncias de corrupção. Embora tenha sido vereador e deputado por 30 anos, Bolsonaro conseguiu construir a imagem, falsa, de antipolítico. Apesar de ter sido um parlamentar ineficiente e sem conhecimento da realidade nacional, visivelmente despreparado e sem raciocínio lógico e coerência, conseguiu convencer muita gente de que seria capaz de resolver os gravíssimos problemas do país.

No início de 2018, o maior problema do centro e da centro-direita, dividida entre vários candidatos, não era a posição de Bolsonaro em segundo lugar nas pesquisas, mas não muito longe dos demais. O problema era a liderança de Lula, apesar das denúncias e da condenação contra ele, e mesmo estando as esquerdas também divididas, com quatro candidatos. Essa questão foi resolvida em abril com a prisão de Lula, apressada por Sérgio Moro e por seus aliados do TRF 4, em Porto Alegre, para inviabilizar sua candidatura.

Até 6 de setembro de 2018, a o centro e a centro-direita acreditavam que pelo menos um de seus candidatos, o tucano Geraldo Alckmin, com grande estrutura de campanha e muito tempo na televisão, conseguiria superar Bolsonaro e disputar o segundo turno com Fernando Haddad, do PT. Alckmin estava em forte ofensiva contra Bolsonaro, para superá-lo, quando ocorreu o episódio que decidiu a eleição: a facada em Juiz de Fora, em circunstâncias estranhas e até hoje não esclarecidas.

A estocada perpetrada por Adélio Bispo, e que esteve longe de ser profunda e mortal, era o que Bolsonaro precisava para ganhar a presidência da República. Tornou-se vítima, recebendo a solidariedade de quem até então não pensava em votar nele, e inibindo os adversários. Ganhou tempo e espaço na televisão e em todos os meios de comunicação, aparecendo mais do que os demais candidatos juntos. Livrou-se do que seria seu maior tormento na campanha, os debates na TV, alegando que seu estado de saúde não permitia que comparecesse, enquanto cumpria outros compromissos que exigiam mais de suas condições físicas, mas menos do cérebro.

Alckmin teve de mudar sua estratégia de campanha e Bolsonaro, em pesquisa Datafolha, pulou de 28% em 4 de setembro para 36% em 18 de setembro. Ficou claro que o segundo turno seria entre Haddad, em crescimento desde seu lançamento tardio em uma estratégia equivocada de Lula, e Bolsonaro, cada vez mais firme na liderança. Esse era o melhor cenário para o então deputado, pois o sentimento antipetista era grande e ele sabia que os que haviam se unido para derrubar Dilma e o PT não iriam permitir que o partido voltasse ao governo depois de tanto esforço para destroná-lo.

Foi assim que, ainda no primeiro turno, muitos empresários e políticos liberais e de centro e centro-direita, ansiosos por derrotar o PT, verem finalmente executadas as medidas econômicas que pregavam e acreditando que o já anunciado ministro Paulo Guedes faria isso, abandonaram seus candidatos originais (Alckmin, Henrique Meirelles, João Amoêdo, Alvaro Dias) e passaram a apoiar Bolsonaro, na esperança de que ele já vencesse no primeiro turno. Militares de altas patentes, antes resistentes a Bolsonaro e favoráveis a outros candidatos à direita, passaram também a apoiá-lo, temendo a vitória do PT.

Nos últimos dias de campanha ainda houve um esforço de eleitores de centro-esquerda e democratas para que Ciro Gomes, do PDT, conseguisse superar Haddad e ir para o segundo turno — entendiam que ele teria melhores condições de derrotar Bolsonaro. Mas o resultado foi o esperado: Bolsonaro e Haddad disputariam a final. Fora Ciro, com 12%, os demais candidatos tiveram resultados de apenas um dígito.

Bolsonaro, porém, não gostou do resultado. Queria ter vencido logo, para sair fortalecido politicamente e não ter de fazer alianças para o segundo turno, até porque isso poderia prejudicar sua imagem de refratário à política tradicional. Suas possíveis paranóia e megalomania se manifestaram ao achar que tinha havido fraude para impedir sua vitória, uma tese também bem conveniente para seu projeto político.

4. “Ser presidente é pouco pra ele”

Apesar da boa margem à frente de Haddad (46% a 29,3%) e de saber que a oposição ao PT iria lhe garantir os votos da centro-direita, Bolsonaro teve medo de ser derrotado no segundo turno e recorreu à ameaça: se perdesse, seria porque teria havido fraude, e não aceitaria os resultados. Em ocasiões anteriores, ele havia manifestado suas restrições às urnas eletrônicas.

Já nesse momento, antes mesmo do resultado das eleições, Bolsonaro mostrava a intenção que depois se transformaria em um projeto estruturado: chegar ao poder a qualquer custo, com o apoio de seus seguidores fanáticos e incondicionais, dos refratários à volta da esquerda ao governo e das Forças Armadas historicamente antiesquerdistas. Se perdesse nas urnas, o que era improvável, ganharia nas ruas e nos quartéis.

Não foi preciso recorrer ao golpe. Diante da ameaça que para ela representava o PT, o centro e a centro-direita votaram em Bolsonaro e os que não queriam nem o capitão nem o PT não votaram, anularam o voto ou marcaram branco. Bolsonaro teve 55,2% dos votos válidos, contra 44,8% de Haddad. Mas 30,9% dos eleitores se abstiveram, votaram em branco ou anularam o voto. Bolsonaro recebeu, realmente, 39% dos votos dos brasileiros e das brasileiras — o que não tira a legitimidade de sua eleição, mas mostra o real tamanho de seu eleitorado em 2018.

Os que votaram em Bolsonaro não sendo bolsonaristas convictos ou de extrema-direita sabiam muito bem em quem e no que estavam votando. Sabiam que ele é desequilibrado, que defende a ditadura e a tortura, que tem posições e posturas autoritárias, que é despreparado para exercer a presidência. Demonstrações claras do despreparo eram nada falar sobre economia, alegando não entender do assunto, e fugir dos debates com outros candidatos e das perguntas incômodas de repórteres.

Na verdade, o voto dessa parcela de eleitores em Bolsonaro foi um voto contra o PT e a esquerda e a favor das reformas ultraliberais prometidas por Paulo Guedes, um economista da escola de Chicago desprezado por seus colegas liberais que exerceram cargos em outros governos. Guedes prometia colocar o país nos parâmetros do ultraliberalismo desejado pelo chamado “mercado” e parecia que teria ascendência sobre Bolsonaro. Os empresários acreditaram.

Como pretexto para justificar o voto em alguém notoriamente próximo às ideias fascistas e com reiteradas demonstrações de ignorância e despreparo, os que nele votaram alegavam que, no exercício da presidência, Bolsonaro iria mudar seu comportamento e se adaptar aos ritos e decoro do cargo, além de flexibilizar suas relações com os políticos que dizia desprezar e dar liberdade de ação a seus ministros “técnicos”. Que uma coisa era o candidato, outra seria o presidente da República.

Não foi o que aconteceu. Na presidência, Bolsonaro nada mudou em relação ao que sempre foi, pessoal e politicamente. Tem sido coerente com o que pensa e sempre fez. Comprovou seu despreparo e ignorância, sua incompetência, sua intolerância, seu autoritarismo e, principalmente, sua sede de poder e aversão às práticas da democracia.

Ao se eleger, Bolsonaro achou que no governo faria o que quisesse. Mas viu que há limites: a Constituição, as leis, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, os órgãos fiscalizadores, a imprensa e a reação da sociedade civil e da população. Foi tomado de indignação por, entre outras coisas, não poder proibir radares em rodovias, despenalizar o não uso de cadeirinhas para crianças nos veículos e acabar com a publicação de balanços nos jornais. Para que, então, foi eleito presidente, se não poderia adotar medidas que, em sua visão limitada, são tão relevantes?

Sempre com coerência diante de seus princípios e posições, Bolsonaro e seus filhos, seguindo o que pensa o guia teórico deles, o aparentemente transtornado mental Olavo de Carvalho, formularam o que é seu verdadeiro projeto de poder: um golpe nas instituições democráticas para assumir mais poderes em detrimento do Legislativo e do Judiciário, sem a imprensa para cobrar e perturbar e com a sociedade civil e o povo contidos em suas manifestações. Olavo também não esconde isso.

Bolsonaro logo viu que ser presidente é pouco para ele e aumentou sua convicção de que os problemas do Brasil só serão resolvidos se ele for um ditador, como os generais do passado, e não um presidente que não faz o que quer. A partir desse projeto é possível entender o sentido de várias ações do governo Bolsonaro.

5. A estratégia de Bolsonaro & filhos

Nem tudo o que faz Bolsonaro visando construir as condições para o golpe tem apenas esse objetivo. Mas muitas ações convergem para isso. Para dar o golpe, Bolsonaro conta com alguns elementos essenciais, sem ordem de importância:

- Um ambiente de conflitos sociais, com manifestações populares, ações violentas, saques e confrontos entre grupos políticos e deles com a polícia.

- Uma base social de apoio popular fiel, disposta e violenta, mesmo que minoritária na sociedade.

- O apoio incondicional, ao governo federal, de policiais militares e, secundariamente, de policiais civis e federais.

- A existência de grupos de civis armados que defendam o governo e seus adeptos e confrontem com firmeza os adversários políticos.

- A desmoralização do Congresso Nacional, dos políticos e dos partidos perante a população.

- A desmoralização do Supremo Tribunal Federal e de seus ministros.

- A perda de confiabilidade e credibilidade da imprensa tradicional e dos jornalistas, com o fortalecimento de veículos sob controle do bolsonarismo, especialmente emissoras de televisão.

- O apoio do governo dos Estados Unidos e, secundariamente, de vizinhos sul-americanos, para o imediato reconhecimento da nova situação decorrente do golpe.

- O apoio político e financeiro de setores do empresariado.

- O apoio das Forças Armadas.

Bolsonaro e seus filhos têm trabalhado para viabilizar todas essas condições. Algumas vezes, de forma velada, outras de forma escancarada. Exemplos:

- A grande presença de oficiais das Forças Armadas, especialmente do Exército, na  estrutura da Presidência da República, nos ministérios e em inúmeros órgãos do governo.

- O claro favorecimento aos militares na reforma da Previdência, mantendo e até ampliando seus privilégios e vantagens em relação ao pessoal civil.

- Os altos investimentos nas Forças Armadas, apesar das restrições fiscais e orçamentárias que prejudicam setores essenciais, como saúde, educação e pesquisa científica.

- O apoio a aumentos salariais e a reivindicações dos policiais militares e civis, federais e rodoviários, chegando até mesmo a incentivar e sustentar o motim de policiais militares no Ceará.

- A liberação de armas para os civis, com aumento das possibilidades de obtê-las e da quantidade que cada pessoa pode ter, possibilitando às milícias terem armas legalizadas e se organizarem legalmente em clubes de caça e escolas de tiro.

- O incentivo à posse de armas por proprietários rurais e a conivência com o assassinato de líderes camponeses e indígenas.

- As constantes agressões, ameaças e hostilidades contra órgãos de imprensa e contra jornalistas.

- A campanha sistemática contra a Rede Globo e contra a Folha de S. Paulo, que pretende destruir, literalmente, para favorecer, entre outras, as aliadas Record, SBT, Rede TV e agora, ao que tudo indica, CNN.

- Os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal e a convocação de manifestações contra os poderes Legislativo e Judiciário.

- As declarações favoráveis ao golpe militar de 1964, à ditadura que se seguiu, à repressão política, à censura e aos assassinatos e torturas e ao ato institucional número 5.

- A ostensiva articulação com governos à direita na América do Sul e na Europa, a sustentação aos opositores na Venezuela, as agressões contra Cuba e o alinhamento automático e apoio incondicional a Trump e à política externa dos Estados Unidos, mesmo quando há visíveis prejuízos econômicos e diplomáticos para o Brasil.

- Os benefícios ao sistema bancário e a empresários aliados ao governo, com flexibilização de medidas regulatórias e de proteção ao trabalho e ao meio ambiente e a não cobrança de multas.

- As declarações no sentido de ser necessário editar novo AI-5 caso haja no Brasil manifestações como as que ocorriam no Chile antes da pandemia.

- Diversas decisões e o discurso voltados exclusivamente para seus adeptos, visando mantê-los agregados e dispostos a defendê-lo.

- A criação da Aliança pelo Brasil, partido sob seu total controle e comando, instrumento político importante para organizar e mobilizar seus adeptos.

Vistas isoladamente, essas medidas podem ser tidas como decorrências naturais de políticas de um governo de extrema-direita que flerta com o fascismo. Mas quando se conhece os antecedentes de Bolsonaro, seu pensamento e suas atitudes, ficam claras suas intenções. O comportamento dele diante da pandemia que assola o mundo só reforça essa convicção.

6. “Cometeu crime de responsabilidade”

Bolsonaro sabe que seu governo será julgado pelos eleitores principalmente pelo desempenho na economia. E que o apoio do empresariado e do “mercado” depende de ter sucesso nesse campo. Até o início da pandemia, os resultados econômicos e financeiros eram pífios e insuficientes para sustentar um crescimento razoável do país. O desemprego e a informalidade já estavam altos e havia um clima de decepção.

Bolsonaro em Jacksonville, nos EUA, em 10/03/2020 . Foto: [Alan Santos/PRA pandemia surpreendeu Bolsonaro, que ainda por cima fez uma desastrosa viagem aos Estados Unidos que levou à contaminação de 25 membros de sua comitiva e, muito provavelmente, embora sem confirmação oficial, dele próprio e de sua mulher, Michelle. Diante da perplexidade inicial do governo federal, governadores e prefeitos começaram a tomar medidas para tentar conter o alcance da pandemia, e isso desagradou Bolsonaro, por vários motivos:

- A perspectiva de uma recessão econômica, em decorrência da pandemia, e de não haver condições para a necessária recuperação até 2022, quando haverá eleições.

- A pressão de empresários aliados, alguns dos quais se manifestando publicamente, contra a aplicação de medidas de distanciamento social recomendadas por autoridades mundiais e locais de saúde, e que levou à interrupção de muitas atividades produtivas e, assim, do faturamento de empresas e de autônomos.

- A resistência de Guedes e da área econômica do governo a adotar, a exemplo de outros países, medidas eficazes para apoiar as empresas e assegurar renda para trabalhadores inativos, desempregados, autônomos, informais e pessoas em situação de rua, o que implica desembolso de recursos públicos e, na visão da equipe econômica, dificultará ainda mais a retomada da economia.

Ao lado disso, como viu que não teria comando absoluto sobre todas as ações contra a pandemia, pois muitas estão sob gestão dos governadores e prefeitos, alguns dos quais poderão ser candidatos contra ele, Bolsonaro resolveu afirmar sua autoridade pelo conflito, não pela união, contestando decisões que contrariam sua postura de pôr a economia e a sustentabilidade de empresas acima da saúde da população.

Antevendo os problemas que terá pela frente depois da pandemia, Bolsonaro tenta se desvincular das responsabilidades pelos resultados do combate e pela inevitável recessão econômica que se seguirá. Se as consequências da pandemia forem graves, dirá que a culpa é dos governadores e dos prefeitos que tomaram medidas drásticas que de nada adiantaram e ainda prejudicaram a economia e causaram desemprego.

Se as consequências forem mais brandas, Bolsonaro atribuirá os méritos a ele e a seu governo e dirá que a recessão e o desemprego foram causados pela “histeria” e pelo “alarmismo” dos governadores e prefeitos. Quer ganhar em qualquer cenário e acusar os que podem vir a enfrentá-lo em 2022.

Mas, ao mesmo tempo, ao contestar as autoridades internacionais e brasileiras de saúde e os adversários políticos, Bolsonaro procura manter seus seguidores unidos, insuflando-os a questionar as medidas restritivas e se colocarem ao lado dele contra os “inimigos”. Se a pandemia levar a uma situação em que a deterioração das condições de vida das pessoas, principalmente das mais pobres e vulneráveis, provoque manifestações de rua, protestos e saques, Bolsonaro precisará de seus adeptos e responsabilizará os defensores do distanciamento social.

Assim, as posições irresponsáveis que Bolsonaro tem defendido em relação à pandemia são, em boa parte, decorrentes de seu desequilíbrio mental, de sua ignorância e de sua postura contra a ciência, mas não se limitam a isso. São pensadas e têm em vista seu fortalecimento político e a criação das condições para o almejado golpe. Para ele, crise e insatisfação popular formam o caldo de cultura ideal para isso.

Com a medida provisória que praticamente revoga a Lei de Acesso à Informação, Bolsonaro tentou dar mais um passo para aumentar os poderes e impedir que o governo seja fiscalizado pela imprensa. Mas a MP servia também para impedir que os resultados dos testes dele e de sua mulher para detectar o coronavírus fossem revelados.

E por que Bolsonaro esconde os laudos? Porque provavelmente deram positivo, e mesmo assim ele foi às ruas, em 15 de março, cumprimentou manifestantes e pegou em seus celulares. Propagou o vírus e cometeu um crime de responsabilidade.

7. “Impeachment não interessa hoje a líderes”

Se as condições para o golpe já existissem, Bolsonaro já o teria dado. A demora o irrita e a pandemia criou uma situação nova que traz, para ele, riscos e oportunidades. Bolsonaro poderia sair maior ou menor dessa crise, mas o importante, para seus planos, é que sua base social de apoio, que inclui os empresários mais à direita, esteja sólida e seus adversários — que são todos os que não estejam incondicionalmente ao seu lado — enfraquecidos.

Bolsonaro conta com conflitos de rua entre seus adeptos e a esquerda, porque sabe que os que se colocam no centro não vão às ruas quando o clima esquenta — limitam-se a manifestações pacíficas e de preferência aos domingos. Conta com a PM ao seu lado e, em condições extremas, os milicianos armados podem ajudar a reprimir seus opositores. Acha que se a briga for com a esquerda, o empresariado, setores à direita e meios de comunicação, mesmo alguns que tanto hostiliza, estarão ao seu lado.

Esse cenário, para os bolsonaristas, é o que acontecerá se houver tentativa de submetê-lo a impeachment, o que, nas previsões deles, não ocorrerá durante a pandemia. Além de não ser um momento adequado, o Congresso não está se reunindo presencialmente e os opositores não podem ir para as ruas. E o impeachment não interessa hoje a líderes parlamentares que preferem acreditar no desgaste do presidente até 2022.

Pois as eleições de 2022 são o limite traçado por Bolsonaro para o golpe. Ele quer disputar o segundo turno com um candidato do PT, por isso aposta na polarização com esse partido e com a esquerda. Se até as eleições não houver como concretizar o golpe, o período pós-eleitoral é considerado decisivo. Se Bolsonaro ganhar a eleição, estará forte para colocar seus militantes nas ruas e aí há duas hipóteses: se tiver feito maioria no Congresso, aprovará as medidas autoritárias que quiser e depois pressionará o Supremo, já com ministros nomeados por ele, a não criar caso; se não tiver maioria, aproveitará o recesso do Legislativo e do Judiciário para dar o golpe, com seus adeptos nas ruas e em conflito com a esquerda.

Se perder as eleições, Bolsonaro, como já se sabe, alegará que houve fraude e radicalizará: militantes e milicianos nas ruas, com apoio das polícias, e exigirá novo pleito, já que as urnas eletrônicas não possibilitam a recontagem. Espera que a esquerda reaja, especialmente se o vencedor for de seu campo, e estará instalado o cenário em que ele conta com a intervenção das Forças Armadas a seu favor, como presidente ainda no cargo. Anular o pleito e estender o mandato, sustentado pelos militares, é o passo seguinte.

Bolsonaro sabe que a parte mais difícil desse plano é conquistar o apoio das Forças Armadas para uma aventura golpista. Mas acredita que os militares ficarão sem alternativa e optarão por ele. Como é megalomaníaco e pensa ser indestrutível por ter sido atleta, não conta com uma resistência da sociedade civil mais forte que a ação de seus militantes, milicianos e policiais, nem com uma reação contrária dos militares. Há, porém, um fator fora de seu controle que o preocupa: Trump perder a eleição em novembro. Bolsonaro não pensa na hipótese de ter de deixar a presidência antes de 2022, mesmo com seu progressivo isolamento político.

O plano de Bolsonaro pode dar ou não certo porque há muitas variáveis em jogo e muito tempo pela frente, sujeito a tempestades e pandemias. Ele agora está jogando no tudo ou nada para neutralizar adversários e manter o apoio de sua base. Sabe que há riscos, mas se considera um super-homem. Os que se opõem a ele e defendem a manutenção da democracia precisam estar preparados para impedir que avance. E, mesmo que pensem que o projeto de golpe não existe ou não tem chances de sucesso, descartar cenários nunca é bom na disputa política.

* Hélio Doyle, professor aposentado da Universidade de Brasília (Unb), é jornalista e analista político. Também foi secretário dos governos Cristovam Buarque e Rodrigo Rollemberg, no Distrito Federal.

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