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João Lister

Advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV e psicanalista

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Brasil, a república do extermínio

O episódio do Alemão/Penha não é um ponto fora da curva — é expressão viva de uma máquina que mata para que os privilégios permaneçam

Rio de Janeiro (RJ) - 29/10/2025 - Protesto contra a operação policial que deixou mais de 120 pessoas mortas no Complexo da Penha, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Na manhã de 28 de outubro de 2025, mais de 2 500 agentes das polícias civil e militar do Estado do Rio de Janeiro deflagraram a operação que entrou para os anais como uma das mais letais da história recente do país: nos complexos da Penha e do Alemão, numa ofensiva anunciada como “guerra ao Comando Vermelho”, a contagem oficial oscilava entre 58 mortos, segundo o governador, e até 132 conforme a Defensoria Pública.

Corpos empilhados, ruas bloqueadas, blindados, troca de tiros, barricadas em chamas: uma favela transformada em campo de batalha, e vidas perdidas avalizadas pelo Estado.

Este não é um episódio isolado e menos ainda uma falha pontual. Ele pertence a uma longa linha de operações de segurança pública no Brasil que, em vez de proteger vidas, normalizam a eliminação de corpos indesejados — pobres, negros, periféricos, indígenas, quilombolas, sem-terra, sem-teto. A frase “bandido bom é bandido morto”, reiterada por segmentos bolsonaristas, funciona como carcereiro ideológico dessa lógica: o Estado assume o papel de executor, e seus agentes, de julgadores-coveiros, justiceiros que agem sem a Justiça.

Mas o que há além do espetáculo de armas e mortes? O que sustenta a máquina que mata e silencia? A resposta reside no entrelaçamento das forças de segurança com interesses imobiliários, latifundiários e do crime organizado — aliados invisíveis, cúmplices ativos, que transformam territórios de pobreza em zonas de controle, expulsão e lucro.

A lógica da eliminação

O cerne dessa lógica se dá em três movimentos: primeiro, a narrativa de que a segurança exige corpos abatidos (“bandido bom é bandido morto”). Segundo, a prática operacional em que a polícia entra em favelas ou acampamentos de modo truculento, espalha o terror com fuzis, helicópteros e tanques — mas também viabiliza expulsões, reintegrações de posse e abertura de terrenos para incorporação imobiliária. E terceiro, o vínculo entre agentes do Estado, milícias e facções: enquanto as forças de segurança invadem comunidades, milicianos fornecem o armamento ou facilitam o tráfico, alimentando o ciclo de morte que, em última instância, beneficia o capital e o latifúndio.

No Rio, as milícias que emergiram do aparato policial transformaram-se em empreiteiras, loteadoras, controladoras de serviços públicos informais e até de “segurança privada”. No campo, terras populares atravessam reintegrações brutais para dar lugar a loteamentos privados ou à expansão de latifúndios. É nessa engrenagem que a morte do outro se torna instrumento de estabilização econômica e poder político.

No episódio do Alemão e da Penha, a polícia justificou a operação como combate à facção. Contudo, o que vemos é muito mais: o Estado que mata enquanto promove a remoção, a invisibilidade e a expulsão de corpos que estorvam. A memória da ditadura militar está viva em cada helicóptero que baixa sobre a favela, em cada tiro que ecoa na viela, em cada nome que não será investigado.

Memória, invisibilidade e impunidade

A história mostra que esse padrão não começou ontem. Nos anos de chumbo da ditadura, grupos como o Esquadrão da Morte—formado por policiais civis e militares no final dos anos 1960—matavam jovens negros e pobres, em São Paulo e no Rio, com apoio tácito do Estado.

 A própria Comissão Nacional da Verdade apontou que durante o período os estudantes eram alvo central da repressão.
Na década de 1990, o massacre no Carandiru (111 mortos), as chacinas em Vigário Geral (21 mortos) ou Candelária (8 mortos) evidenciaram que a “normalização da morte” prosseguiu no regime democrático.

Mais recentemente, reintegrações forçadas, expulsões de sem-terra e sem-teto, ataques a indígenas e quilombolas completam o mosaico da violência de Estado.

A tabela abaixo reúne uma cronologia de episódios — que inclui também agressões a indígenas, quilombolas, sem-terra e sem-teto — evidenciando que matar e expulsar é política de Estado tanto quanto construir é negócio privado.

Ano

Caso / Operação

Local

Nº mortos (aprox.)

Autores apontados

1968–75

Esquadrão da Morte

SP / RJ

1.000–3.000

Policiais civis/militares (DOPS/DEIC)

1974

Operação Camanducaia

SP → MG

dezenas (97 jovens)

Policiais civis do DEIC-SP

1992

Massacre do Carandiru

SP (presídio)

111

Polícia Militar de SP

1993

Chacina da Candelária

RJ

8

Policiais / milicianos

1993

Chacina de Vigário Geral

RJ

21

Policiais / paramilitares

1995

Massacre de Corumbiara

RO

10–16*

Polícia Militar + jagunços

1996

Massacre de Eldorado dos Carajás

PA

19

Polícia Militar do Pará

2005

Chacina da Baixada

RJ (Baixada Fluminense)

29

Policiais militares / grupo de extermínio

2012

Desocupação do Pinheirinho

SP (São José dos Campos)

mortes não confirmadas¹

Polícia Militar de SP

2013

Crise e massacres em Pedrinhas

MA (presídio)

dezenas (vários episódios)

Estado / facções

2017

Motins em presídios (Alcaçuz, Manaus, RR)

RN, AM, RR

dezenas (ex.: 26)

Facções + Estado falho

2021

Operação Jacarezinho

RJ

27

Polícia Civil do RJ

2025

Operação no Complexo do Alemão / Penha

RJ

dezenas-centenas

Governo do RJ -Cláudio Castro

*Estimativa de testemunhas maior que oficial
¹Estimativas falam em 1–2 mortes confirmadas e milhares de pessoas removidas

O que esse arquivo revela

Ele revela que o Estado brasileiro sistematicamente recorreu à eliminação de vidas como meio de gestão social e territorial. Ele revela que corpos periféricos foram descartados para abrir espaço à valorização imobiliária, ao controle das favelas, ao domínio dos latifundiários. Ele revela que a segurança pública transformou-se em um negócio da morte: milícias armadas, reintegrações de posse violentas, tráfico de terras e expulsões que beneficiam quem já tem.

A responsabilidade política

Quando políticos repetem slogans como “bandido bom é bandido morto”, ou promovem operações que resultam em centenas de mortos com pouca transparência, eles não estão apenas discursando: eles estão institucionalizando a morte. E as forças de segurança que operam nessas condições continuam contaminadas por uma cultura autoritária, herdeira da ditadura, que vê o pobre como inimigo interno e a favela como trincheira a ser varrida.

O episódio do Alemão/Penha não é um ponto fora da curva — é expressão viva de uma máquina que mata para que os privilégios permaneçam. Não basta investigar cada operação isoladamente: é preciso desmontar o regime de poder que considera corpos descartáveis. É preciso exigir investigação, transparência, reparação e uma política de segurança que respeite a vida humana. Porque matar em nome da ordem só consolida a desigualdade — e faz da República uma farsa.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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