Casca grossa
São Paulo está enfeitada por seus ipês, que ignoram poluição, barulho ou falta de espaço. A cidade se transforma e a gente também
O ipê passa um ano esquecido no meio de outras árvores e, de repente, vira majestade.
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- É um escândalo!
Enfático, ele repete:
- Um escândalo!!! Nunca vi disso.
Zezo Cintra, mateiro-raiz, jornalista e professor, não está assustado com a última do Trump. O escândalo que paralisa meu amigo é outro.
- Os ipês floriram. Todos ao mesmo tempo. É a primeira vez que vejo isso. Acordei e meu sítio está tingido de amarelo. E, ao lado, três ipês brancos estão cobertos de pétalas. Parece neve em plena Bragança Paulista.
A beleza na roça é a mesma no asfalto. Ipê não escolhe terra, floresce no cerrado, na floresta, na mata atlântica, no quintal de casa; cresce na caatinga e em beira de praia. Quem mais semeia é a passarinhada.
Se ninguém — no caso, a gente — incomoda ou agride, o ipê chega lá perto do céu. Passa fácil dos trinta metros. No sossego, supera os cem anos.
Agora quem me conta as aventuras dessa majestade de nossa flora é Takanoli Tokunaga, um estudioso que conversa com a natureza, entende o vento e ouve as árvores.
O ipê, com autorização para corte e seguindo as práticas sustentáveis, pode se transformar em móveis, piso, casa. Gera riqueza e emprego sem devastação.
Mas não se engane: ipê altivo é o que cresce livre, que refresca no calor e protege na chuva; abriga animais, tem raízes profundas e garante ar puro tanto para quem preserva quanto para quem derruba.
Árvore generosa e, ao mesmo tempo, “casca grossa”. Ipê não dá moleza a fungo e muito menos a cupim.
É, ipê é sinônimo de firmeza. Talvez por isso, na língua indígena, signifique casca dura.
São Paulo está enfeitada por seus ipês, que ignoram poluição, barulho ou falta de espaço. A cidade se transforma e a gente também. Se, em outras épocas do ano, andamos de olhos apontados para o chão com medo das calçadas traiçoeiras, agora o piso áspero e esburacado ganha um tapete de pétalas. A gente levanta o pescoço e encontra a explicação.
No meio da crise climática, do discurso constante do fim do mundo, do planeta a derreter, o que essa florada exuberante quer nos dizer?
Acho que nem meus sábios amigos têm a resposta. De minha parte, o que posso fazer — e tenho feito — é aproveitar o encanto deste setembro. Nas caminhadas, observo, fotografo e me surpreendo. Anteontem, enquanto clicava um esplêndido ipê amarelo, fui alertado pela moça que passeava com o melhor amigo. O grito de sentinela, junto com um latido, veio do outro lado da calçada.
- Moço, pelo amor de Deus, cuidado. Vão roubar seu celular!!
O motoboy atrasou a entrega por segundos e alertou:
- Doutor, vagabundo leva seu telefone. É pá, pum.
Agradeço o cuidado, guardo o celular e, à sombra do ipê dourado, lembro do mateiro embevecido. “É um escândalo!”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

