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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Casca grossa

São Paulo está enfeitada por seus ipês, que ignoram poluição, barulho ou falta de espaço. A cidade se transforma e a gente também

Ipê amarelo (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

O ipê passa um ano esquecido no meio de outras árvores e, de repente, vira majestade.

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- É um escândalo!

Enfático, ele repete:

- Um escândalo!!! Nunca vi disso.

Zezo Cintra, mateiro-raiz, jornalista e professor, não está assustado com a última do Trump. O escândalo que paralisa meu amigo é outro.

- Os ipês floriram. Todos ao mesmo tempo. É a primeira vez que vejo isso. Acordei e meu sítio está tingido de amarelo. E, ao lado, três ipês brancos estão cobertos de pétalas. Parece neve em plena Bragança Paulista.

A beleza na roça é a mesma no asfalto. Ipê não escolhe terra, floresce no cerrado, na floresta, na mata atlântica, no quintal de casa; cresce na caatinga e em beira de praia. Quem mais semeia é a passarinhada.

Se ninguém — no caso, a gente — incomoda ou agride, o ipê chega lá perto do céu. Passa fácil dos trinta metros. No sossego, supera os cem anos.

Agora quem me conta as aventuras dessa majestade de nossa flora é Takanoli Tokunaga, um estudioso que conversa com a natureza, entende o vento e ouve as árvores.

O ipê, com autorização para corte e seguindo as práticas sustentáveis, pode se transformar em móveis, piso, casa. Gera riqueza e emprego sem devastação.

Mas não se engane: ipê altivo é o que cresce livre, que refresca no calor e protege na chuva; abriga animais, tem raízes profundas e garante ar puro tanto para quem preserva quanto para quem derruba.

Árvore generosa e, ao mesmo tempo, “casca grossa”. Ipê não dá moleza a fungo e muito menos a cupim.

É, ipê é sinônimo de firmeza. Talvez por isso, na língua indígena, signifique casca dura.

São Paulo está enfeitada por seus ipês, que ignoram poluição, barulho ou falta de espaço. A cidade se transforma e a gente também. Se, em outras épocas do ano, andamos de olhos apontados para o chão com medo das calçadas traiçoeiras, agora o piso áspero e esburacado ganha um tapete de pétalas. A gente levanta o pescoço e encontra a explicação.

No meio da crise climática, do discurso constante do fim do mundo, do planeta a derreter, o que essa florada exuberante quer nos dizer?

Acho que nem meus sábios amigos têm a resposta. De minha parte, o que posso fazer — e tenho feito — é aproveitar o encanto deste setembro. Nas caminhadas, observo, fotografo e me surpreendo. Anteontem, enquanto clicava um esplêndido ipê amarelo, fui alertado pela moça que passeava com o melhor amigo. O grito de sentinela, junto com um latido, veio do outro lado da calçada.

- Moço, pelo amor de Deus, cuidado. Vão roubar seu celular!!

O motoboy atrasou a entrega por segundos e alertou:

- Doutor, vagabundo leva seu telefone. É pá, pum.

Agradeço o cuidado, guardo o celular e, à sombra do ipê dourado, lembro do mateiro embevecido. “É um escândalo!”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.