Chame o síndico
O “crime perfeito”, bem planejado e sem provas, não mereceu castigo
Edna e Toninho. Uma não ia com a cara do outro e vice-versa.
Ela, síndica, sem filhos, com mais de 50, funcionária pública. Ele, pré-adolescente, levado, ardiloso.
A chuva forte daquela quarta-feira piorou o que já não ia bem. Em Vila Isabel, na zona norte carioca, as obras para conter enchentes produziram pequenas montanhas de terra, que com o temporal viraram pântano denso e fedorento. O menino Toninho e sua turma começaram uma guerra de lama. Era assim nos anos 1970, brincava-se descalço na rua com sol ou trovoada.
Vizinho à barrenta batalha está o edifício Silmara, onde a síndica, o menino e o grupo de bagunceiros moram. Altíssimo em seus quatro andares, o prédio se destaca na rua sossegada de casas e vilas.
A síndica Edna é puro orgulho e vaidade porque acaba de terminar a obra na portaria. Depois de sofrido rateio entre os 67 apartamentos está tudo pronto. Pintura, sofás, tapete, espelho novo, “um brinco”, ela repete em infinitas vistorias. Ao ver a farra da garotada, Edna entra em pânico. “Esses demônios vão emporcalhar a portaria e as paredes do prédio.”
A síndica vai ao apartamento da família do menino e ameaça: se houver uma gota de lama na área reformada será aplicada multa pesada e anotação no livro de ocorrência.
A mãe do garoto se assusta, desce até a rua e resgata Toninho. O garoto se revolta e chora na frente dos amigos. Da janela do 204, a síndica ri vitoriosa.
Ela não sabe, mas naquele momento a vingança começa a ser planejada. Logo verá o que uma pequena mão suja é capaz de aprontar.
No dia seguinte, o menino espera escondido pela inimiga. Enquanto ela manobra a Variant 1973 na garagem, ele faz limpeza meticulosa na narina direita, sobe ao segundo andar e deposita a sujeira no botão da campainha do apartamento dela.
Toninho desce com rapidez. Agora é a narina esquerda que passa por vigorosa faxina. No botão do elevador ele gruda suas melecas. O garoto e os amigos assistem do alto da escada quando o indicador fino e de unha vermelha aperta o botão. A síndica se assusta como se tivesse levado um choque. Sem perder a classe, olha em volta, tira um lenço de papel da bolsa e limpa o dedo.
Os meninos sobem correndo ao segundo andar e num vão entre os degraus se deliciam com a parte final da pegajosa vingança.
Agora é o polegar que se gruda na gosma suja do botão da campainha. A síndica perde de vez a calma, grita um palavrão. A diarista leva um susto ao abrir a porta e a molecada foge em êxtase.
A síndica vai à casa do menino, mas o pai retruca que ela não pode acusar o filho, que aliás, era muito asseado e jamais faria isso. O “crime perfeito” e sem provas não tem castigo.
Não se sabe o destino da síndica Edna. O menino Toninho virou homem, casou e quando soube o preço do condomínio do novo apartamento decidiu: “serei o síndico, aí me livro da despesa”.

Agora chamado de seu Antônio, ele era do tipo descansado: delegava poder ao zelador e deixava a administradora à vontade. Na assembleia, entrava calado e saía em silêncio.
Já tinha visto na quadra do prédio o adolescente do apartamento 33. Cesar era um garoto simpático, bom de bola e que fazia sucesso com as meninas. Naquela noite, César foi para a garagem com Tainá. Eles namoraram e ouviram música no carro do pai dele. Cesar levou a menina até o elevador, voltou para arrumar o carro e deixar o rádio na sintonia preferida do pai.
Apertadíssimo para fazer xixi, se escondeu atrás de uma coluna da garagem e se aliviou ali mesmo. Nem percebeu que um carro entrava. Era o síndico.
O homem vinha do futebol de terça à noite. Na verdade, 30 minutos de bola e 3 horas de cerveja com os amigos. A bexiga prestes a explodir e o síndico sentiu que não daria tempo de chegar em casa.
Foi então que os dois se viram. Calças abertas e olhares incrédulos. Que situação!
César curvou o pescoço, constrangido. O síndico usou a mão livre e botou o indicador sobre os lábios, como a pedir silêncio. Então prometeu ao jovem vizinho, já quase amigo: “Fica entre nós, é nosso segredo.”
Antônio e Cesar nem souberam que vinte minutos depois a moradora do 44 estranhou o chão molhado e fedorento.
A mulher reclamou com o vigia da noite, que interrompeu o cochilo e aconselhou, “melhor a senhora falar com o síndico”.
*Este texto foi publicado originalmente no primeiro livro de Luis Cosme Pinto, Ponte Aérea, em 2010. Agora a crônica foi reescrita e ganhou algumas mudanças.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

