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Mário Maurici

Jornalista, ex-vereador e ex-prefeito de Franco da Rocha, ex-vice-presidente da EBC e ex-presidente da Ceagesp. Atualmente, deputado estadual e primeiro secretário da Assembleia Legislativa de São Paulo.

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Como financiar a Tarifa Zero

Transporte gratuito pode ser a chave para salvar um sistema à beira do colapso

Interior de ônibus (Foto: Prefeitura Rio de Janeiro/Divulgação)

Um dos maiores desafios da Tarifa Zero é encontrar uma forma de financiá-la. Talvez por isso o projeto ainda não tenha decolado, apesar de ser um sucesso onde é implantado.

Agora, com a disposição do presidente Lula em assumir a gratuidade no transporte público como uma bandeira de seu terceiro mandato, acredito que teremos condições de desatar esse nó.

Hoje, somos o país com o maior número de cidades com Tarifa Zero no mundo. Um levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos revela que 171 municípios já têm Tarifa Zero nos ônibus em pelo menos um dia da semana, e 127 concedem o benefício de forma integral. Em todas essas experiências, quem paga a conta são as prefeituras.

Com os mecanismos disponíveis hoje e com o financiamento centralizado nos municípios, a Tarifa Zero é uma política local, um luxo reservado a cidades de pequeno e médio porte, com redes de transporte urbano menos complexas e onerosas. Dos pouco mais de 300 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, apenas 12 contam com Tarifa Zero.

Desenvolver um planejamento técnico e encontrar uma engenharia financeira com fontes estáveis para o custeio da gratuidade são hoje os principais obstáculos que o Governo Federal deverá superar para transformar a Tarifa Zero em um projeto nacional.

Existe um desafio considerável de governança a ser superado, que envolve questões como a repactuação entre União, Estados e municípios sobre responsabilidades relativas ao transporte urbano, mudanças no formato de remuneração das empresas por quilômetro rodado em vez de passageiro embarcado e mecanismos para a modernização da frota e de pontos de embarque e desembarque.

Sob o ponto de vista da engenharia financeira, existe uma série de estudos desenvolvidos por especialistas que apontam caminhos, mas nenhum deles foi aplicado em escala próxima à do nosso território. Vou citar três possibilidades de custeio, mas existem muitas outras.

Uma das principais soluções é o redesenho do vale-transporte. Com a gratuidade no transporte urbano, o pagamento do benefício aos trabalhadores deixaria de ser necessário, e as empresas converteriam esse custo em contribuição para um fundo destinado ao financiamento da Tarifa Zero.

A Fundação Rosa Luxemburgo se debruçou sobre os números e concluiu que, para financiar a Tarifa Zero, a contribuição das empresas deveria ser de aproximadamente R$ 200 por trabalhador. Esse pode ser um bom negócio para as empresas, uma vez que, em muitos casos, o custo do vale-transporte supera esse montante.

Outra possibilidade que está colocada na mesa é a realocação da Cide-Combustível, uma taxa que já é arrecadada quando abastecemos nossos veículos e distribuída entre União, Estados e municípios. Essa arrecadação poderia ser reaglutinada para o financiamento do transporte gratuito.

Há ainda uma terceira opção, que acredito ser a mais difícil de angariar apoio popular, que é a taxação pelo uso do espaço público. Existem várias formas de se fazer isso, como a ampliação da cobrança de estacionamento rotativo nas cidades e a implantação de pedágios urbanos, restringindo a livre circulação de veículos em determinadas áreas da cidade, como é feito em Londres, por exemplo.

Outro desafio tão grande quanto saber de onde virá o dinheiro é estimar qual valor será necessário para eliminar as catracas dos ônibus. Sabemos que este é um setor com pouca regulação do Estado e baixíssima transparência. Diferentes cifras já começaram a ser ventiladas, todas na casa de dezenas de bilhões de reais, porém nenhuma indica a inviabilidade da implantação.

Fernando Haddad e sua equipe no Ministério da Fazenda estão empenhados em fazer uma radiografia do transporte público no Brasil e encontrar respostas para as dúvidas que ainda pairam no ar. E elas virão. O presidente Lula aposta na Tarifa Zero como uma das grandes bandeiras de seu terceiro mandato, ao lado da isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil e do fim da escala 6x1.

Lá se vão quase 40 anos desde que ouvimos falar pela primeira vez da Tarifa Zero no transporte público, e a pauta segue atual, como um bom vinho que sabe envelhecer. Justiça seja feita: a proposta surgiu no início dos anos 1990, durante a gestão de Luiza Erundina no comando da Prefeitura de São Paulo, pelas mãos de Lúcio Gregori, então secretário de Transportes.

À época, o projeto acabou rejeitado na Câmara, mas, como disse Neruda, “podem cortar as flores, mas não poderão deter a primavera”. Agora, com o fôlego do Governo Federal, parece que a Tarifa Zero está a um passo de deixar de ser uma utopia para se converter em realidade.

Paradoxalmente, a Tarifa Zero pode ser justamente a tábua de salvação do transporte público. Nos últimos anos, o sistema vem perdendo passageiros em ritmo acelerado — um processo agravado pela pandemia de Covid-19 e pela consolidação do home office. Em um modelo sustentado pela tarifa, menos usuários significam menos recursos.

Para equilibrar as contas sem aumentar o preço das passagens, as prefeituras recorrem a subsídios, e as empresas adiam a renovação da frota, cortam linhas e reduzem a oferta de ônibus. O resultado é previsível: um serviço precário, que afasta ainda mais passageiros. Vivemos um círculo vicioso perverso, que empurra o transporte público para o colapso.

A Tarifa Zero surge como uma oportunidade para romper com essa lógica, ao entender o transporte público não como um business, mas como um direito social, que garante a liberdade de ir e vir a todos, independentemente do poder econômico. Quando as pessoas circulam pela cidade, o comércio se fortalece e as oportunidades se expandem. Com menos carros, o ar fica mais limpo e o trânsito melhora. Enxergar isso exige sensibilidade, algo que o presidente Lula tem de sobra.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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