Contra a ilha psicopatológica: por um cuidado que reconecta sujeitos e mundos
"Hoje, com a hiperindividualização da vida, a dor se tornou um processo solitário, cercado de silêncio e de protocolos"
O antropólogo espanhol Ángel Martínez-Hernáez, referência internacional na antropologia da saúde, propõe em seu mais recente livro Elogio de la Incertidumbre (URV, 2023) uma crítica profunda às certezas apressadas que moldam o campo da saúde mental. “Nada é mais perigoso que uma certeza que não escuta.” É com essa frase que o autor nos convida a repensar os modos como escutamos, diagnosticamos e cuidamos do sofrimento psíquico. O prefácio da edição é assinado por Sandra Caponni, pesquisadora central na reforma psiquiátrica brasileira, o que reforça o diálogo entre experiências críticas do Norte e do Sul global.
Vivemos em uma época em que a saúde mental se tornou onipresente. Ela está nas escolas, nas empresas, nas redes sociais e nas políticas públicas. No entanto, essa presença costuma vir acompanhada de fórmulas rápidas, diagnósticos compulsivos e intervenções padronizadas que ignoram a complexidade do sofrimento humano. É nesse cenário que a proposta de Martínez-Hernáez se torna essencial. Ao defender uma ética da incerteza, ele propõe uma escuta mais radical, que reconhece a ambiguidade, a multiplicidade e o enraizamento social da dor.
O autor desmonta as certezas com que a psiquiatria e a psicologia frequentemente operam. Ele questiona a imposição de diagnósticos, a naturalização de modelos biomédicos e a adesão acrítica à lógica de mercado. Mostra como a busca por respostas rápidas atende mais aos interesses das instituições e da indústria do que às necessidades das pessoas em sofrimento.
Condições como depressão, burnout e ansiedade são, em geral, tratadas como disfunções internas, desvinculadas do mundo que habitamos. Mas, e se a dor não vier de dentro? E se a verdadeira enfermidade estiver na ruptura dos vínculos, no colapso da reciprocidade, na dissolução dos laços que sustentam nossa humanidade comum?
Logo no início do livro, o autor apresenta uma metáfora potente para descrever o estado atual da saúde mental: uma ilha psicopatológica, cercada de mal-entendidos sociais por todos os lados. Trata-se do sujeito isolado por categorias diagnósticas que o desautorizam, etiquetado por saberes que o afastam das redes de relação que estruturam sua dor. Como no caso de Leif, um trabalhador que, após sofrer assédio moral no trabalho, perdeu o emprego, a dignidade, a saúde mental e o lugar no mundo. A única resposta oferecida pelo sistema de saúde foi classificá-lo como “o dinamarquês louco”.
O problema, segundo Martínez-Hernáez, não está apenas no diagnóstico equivocado. Ele está na estrutura do cuidado, que internaliza o sofrimento social e o transforma em falha pessoal. Está também na ideologia neoliberal, que nos ensina que devemos ser donos de nós mesmos, gestores da própria dor, empreendedores da subjetividade.
Na lógica da sociedade do desempenho, como descreve Byung-Chul Han, somos levados a acreditar que liberdade é dar conta de tudo sozinhos. Essa crença se disfarça em slogans como “minha melhor versão”, “dona de mim” ou “autonomia emocional”. O sujeito contemporâneo, assim, passa a acreditar que é o centro de tudo e, paradoxalmente, carrega o peso do mundo nos ombros. A depressão, nesse contexto, deixa de ser uma disfunção do afeto e passa a ser um colapso de sentido, um efeito de um mundo que dissolve a interdependência e promete uma autonomia impossível como ideal de vida.
Nenhum ser humano é autossuficiente. Nenhuma dor é puramente individual. O sofrimento psíquico é um marcador relacional. Ele fala do que foi perdido, do que foi rompido, do que deixou de ser possível entre nós. Por isso, o cuidado, para ser verdadeiro, precisa recusar o individualismo metodológico. Precisa fazer outras perguntas: que redes foram rompidas? Quais violências foram naturalizadas? Quais mundos deixaram de ser habitáveis?
Diante disso, é urgente reconectar. Reconectar o sofrimento às suas raízes sociais. Contra a ilha, precisamos de arquipélagos, compostos por redes de apoio, escuta e acolhimento. Precisamos de instituições que não sejam espaços de normalização da dor, mas lugares de reconstrução do comum.
Martínez-Hernáez, em uma aula recente que tive com ele, disse algo simples e profundo: tempos atrás, quando uma senhora ficava viúva, os vizinhos batiam à porta com um bolinho, com uma conversa, com uma presença. Não era preciso uma consulta, um laudo ou um aplicativo. Era só alguém indo ali, dizer: “estamos com você”. Hoje, com a hiperindividualização da vida, a dor se tornou um processo solitário, cercado de silêncio e de protocolos. É contra essa solidão estruturada que o autor se levanta e é por isso que seu livro é um chamado, ao mesmo tempo ético e político, para reinventarmos o cuidado como prática coletiva.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

