Cruzamento
A esperança se dilui com o passar dos minutos e desaparece de vez quando as primeiras gotas respingam as lentes de seus óculos
A casa caiu. A torre subiu
O susto nem é pelos vinte e cinco andares no terreno que perdeu Figueira e Manacá. O que subiu já está no alto, fazer o quê? A decepção é pelo que foi ao chão a golpes cruéis de trator e escavadeira.
O palacete da tia Palmira e do tio Helvécio não era qualquer morada. Com três andares, bem ajardinado, foi durante anos a construção mais imponente das redondezas. Lá dentro, a passar pelo vão vertical, a fantástica geringonça: uma caixa de alumínio e madeira, com botões pretos num painel reluzente e porta pantográfica. Um legítimo Atlas Schindler: o primeiro e único elevador da rua e do bairro.
Ramiro e os dois primos passaram tardes a subir e descer em renhidas competições. Dois no elevador e outro a escalar freneticamente as escadas. Quem vencia o elevador entrava e os outros dois tiravam no par ou ímpar quem enfrentaria os 45 degraus de mármore. Até almoçar lá dentro, almoçaram.
Ramiro, que havia tempo não passava por ali, está paralisado pelas lembranças, rijo como uma das feiosas pilastras do gigante de cimento e vidro. Tem um pé na calçada e um na faixa de pedestre. Entre os dois olhos, na fronteira das sobrancelhas, surge um sulco, um risco profundo. Ramiro envelhece dez anos em dez segundos. Não admite, mas é verdade: o castelo de sua infância virou entulho.
Ele é despertado por uma buzina. Poucos sons são tão paulistanos como a buzina. Pode ser nervosa, estridente, mal-educada mesmo. Mas também cortês, de agradecimento, quando um motorista cede a vez e o outro dá um soquinho de leve e ainda levanta o polegar na despedida.
Quem buzina para Ramiro é uma dessas motoristas. Ela indica, com a mão esquerda, que a preferência é de Ramiro. E então se vê, não digo o milagre, mas a transformação. A ruga profunda a dividir a testa larga se apruma, os lábios se aproximam das orelhas e os dez anos a mais desaparecem. Ramiro é outra vez um jovem de 74 anos.
Pelo vidro da frente, sem a película escura, enxerga melhor a motorista, o brilho da cabeleira branca e os brincos vermelhos, da mesma cor do colar. Ele sente, ou imagina sentir, o perfume da motorista entre quatro portas. Como estará vestida? Para onde vai?
Uma nova paisagem se instala entre Ramiro e o terrível espigão. Uma paisagem de carne, osso e elegância.
Ramiro continua a encarar a mulher. Dentes brancos e alinhados, rosto bem desenhado e os dedos delicados a dizer: “Por favor, passe”. Ramiro também agita a mão, como a dizer: “Vá você. É um prazer lhe dar a vez”.
E ela admira o cavalheiro grisalho, pescoço ereto, braços fortes. Aceitaria carona? Onde quer chegar?
Hesitação de cinco, sete segundos no máximo, uma eternidade naquela manhã nublada e logo a troca de delicadezas é sufocada pelas buzinas.
A do motoqueiro, que passa a centímetros do carro, é aguda, contínua e altíssima. Entra por um ouvido e antes de sair pelo outro chacoalha os cérebros mais próximos. Um motorista pressiona as duas mãos no centro do volante, baixa o vidro e reclama.
- Decide logo, porra!
É a voz do ódio às 7:12 da manhã de uma segunda-feira.
O carro de trás também berra e o de trás do de trás acaba de enlouquecer a quadra.
Ramiro enfim atravessa. Do outro lado da calçada, olha para trás. Por um instante, pupilas com pupilas. A motorista balança a mão de anéis prateados e acelera.
Terça-feira, 7:10 da manhã. Ramiro volta à mesma esquina. Tem o bigode aparado e o azul da camisa nova combina com o tênis. Quem passa perto dele sente o cheiro mentolado de loção barata.
Anda um pouco sem abandonar a esquina. A esperança se dilui com o passar dos minutos e desaparece de vez quando as primeiras gotas respingam as lentes de seus óculos.
Mas afinal o que deseja Ramiro, que cruza a cidade em busca do que parece impossível? Ele mesmo responde: “Queria ver de novo, falar com os olhos, nada mais. Acredita que até esqueci de olhar para o espigão?”
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

