Cúpula de Berlim
Sob a bandeira da Soberania Digital, Europa sacramenta o recuo regulatório.
O Velho Continente parece ter resolvido dar uma guinada estratégica em suas diretrizes para a agenda digital. No lugar do Efeito Bruxelas1, um giro rumo à Declaração de Soberania Digital, assinada por representantes de diversos países da região, incluindo Frederich Merz e Emmanuel Macron, em uma cúpula em Berlim idealizada e liderada por Alemanha e França que contou com mais de 900 participantes. No lugar do protecionismo regulatório contra as big techs, que marcou a atuação da Comissão Europeia nos últimos seis anos, um ambiente mais acolhedor para os investimentos das empresas locais. Uma mostra clara da dicotomia que sobrevive aos clamores mais inflamados por soberania. Mas críticas da sociedade civil e de parlamentares progressistas deixaram latente a complexa tensão criada entre a ambição da soberania digital e o pragmatismo econômico que se resume ao temor de continuar atrás de Estados Unidos e China na corrida global da inovação. Algo que não é novidade para a maior parte dos países que dependem da infraestrutura e das soluções digitais dos oligopólios atuais.
Como os observadores da agenda digital bem sabem, a Europa se encontra em uma encruzilhada. Por um lado, a partir de 2018, a União Europeia liderou a frente regulatória com legislações como a Lei dos Mercados Digitais (DMA) e a Lei dos Serviços Digitais (DSA), buscando conter o poder das Big Techs e garantir direitos digitais. Por outro, há uma crescente percepção de que este mesmo arcabouço regulatório pode estar se tornando um obstáculo à competitividade.
A dependência dos hyperscalers americanos (Amazon Web Services, Microsoft Azure, Google Cloud, Oracle) é o sintoma mais visível deste desafio, uma realidade reconhecida na própria declaração da cúpula, que fala na necessidade de "gerir dependências estrategicamente". Empresas europeias de ponta, especialmente no campo da Inteligência Artificial, ainda dependem da massiva infraestrutura computacional fornecida por essas companhias para treinar seus modelos, criando um paradoxo: a inovação europeia é, em grande parte, construída sobre uma fundação americana.
Freio de arrumação
Diante deste quadro, o principal resultado da cúpula foi a consolidação de uma frente política disposta a reavaliar o ritmo da regulação. O anúncio mais impactante foi a proposta franco-alemã de adiar por 12 meses a aplicação de partes da Lei de IA (AI Act). Além disso, os líderes pediram uma simplificação do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais (GDPR, na sigla em inglês), sinalizando um movimento maior em direção a um ambiente de negócios mais ágil.
Para formalizar essa visão, ministros e líderes políticos presentes assinaram a Declaração para a Soberania Digital Europeia. O documento, embora não seja legalmente vinculante, representa um forte compromisso político e busca, em primeiro lugar, definir o termo, afastando-o do protecionismo:
"Soberania digital não significa isolamento ou protecionismo; significa garantir que a Europa possa agir de forma independente e autodeterminada com base em suas próprias leis, valores e interesses de segurança, enquanto prospera na cooperação internacional com parceiros que compartilham os valores e princípios europeus"
O documento estabelece um roteiro baseado em princípios claros:
- Promoção de Soluções Europeias: Fomentar um clima de investimento e um quadro regulatório "claro, previsível e justo" para impulsionar soluções locais, com forte apoio a tecnologias de código aberto.
Investimentos Estratégicos: Aponta para a necessidade de visão de longo prazo e investimentos em áreas críticas como semicondutores, computação de alta performance, redes de comunicação, nuvem e IA.
- Gestão de Dependências: A declaração adota uma postura pragmática, afirmando que o objetivo "não é a autossuficiência, que não é realista nem desejável", mas sim a capacidade de agir com autonomia onde for mais importante.
Enquanto o evento ocorria, a contradição se fazia transparente. No mesmo dia em que líderes políticos assinavam a declaração que pedia um ambiente mais favorável à inovação, a Comissão anunciava investigações para avaliar se os serviços de nuvem da Amazon e da Microsoft deveriam ser designados como "gatekeepers" sob o DMA, o que lhes imporia regras ainda mais estritas.
Este duplo movimento expõe uma divisão dentro da própria estrutura de poder europeia. De um lado, o poder executivo da burocracia da Comissão Europeia, ainda focada em aplicar as regras enquanto os comissionários que assumiram no início do ano começam a promover a contenção do apetite normativo. Do outro, os líderes dos Estados-membros preocupados com as consequências econômicas dessas mesmas regras para as empresas nacionais.
Não à toa, um dia depois da Cúpula, a Comissão editou suas normativas em um pacote conhecido como Digital Omnibus1, já colocando um freio de arrumação nas divergências e propondo a “simplificação” de diversas legislações aprovadas nos últimos anos. Entre elas, o GDPR, o AI Act e o Data Act. A inicativa foi criticada fortemente pelos principais think tanks e movimentos sociais que militam pela proteção de direitos digitais por, na prática, se tratar de um recuo massivo nas garantias legais.
Soberania relativa
Paradoxalmente, enquanto esta queda-de-braço ocorria, o setor privado europeu demonstrava na prática que a inovação não só é possível, como já está acontecendo dentro do atual quadro regulatório. Os anúncios empresariais da semana da Cúpula, articulados com os dois governos promotores do encontro, servem como a mais forte refutação à tese do recuo.
Empresas | Anúncio | Importância Estratégica |
SAP e Mistral AI | A gigante de software alemã SAP anunciou a integração dos modelos de IA da startup francesa Mistral AI em suas soluções de nuvem. | Uma gigante europeia aposta em uma campeã de IA local, criando uma oferta soberana para milhões de clientes empresariais. |
Centro de Dados da Schwarz Group | O grupo dono da rede Lidl anunciou um novo data center na Alemanha para sua divisão de nuvem, a StackIT, em um investimento de 11 bilhões de euros. | Investimento direto em infraestrutura de nuvem soberana, oferecendo uma alternativa local aos hyperscalers americanos. |
Deutsche Telekom e Aleph Alpha | A gigante alemã de telecomunicações investiu na Aleph Alpha, outra startup alemã de IA. | Mais um exemplo de um gigante industrial fomentando o ecossistema local de IA para reduzir a dependência externa. |
Nextcloud e IA Soberana | A empresa aprofundou a integração de modelos de IA de código aberto que podem ser hospedados localmente em sua plataforma. | Oferece a capacidade de usar IA generativa sem que os dados precisem sair da infraestrutura controlada pela organização. |
O que os departamentos de marketing não disseram é que a maior parte destes acordos possui a bênção de alguma big tech dos EUA. Microsoft com Mistral, Google com Schwarz, Oracle com Aleph e as três grandes da nuvem com SAP e Deutsche Telekom. A única que reivindica o status de independente é a alemã NextCloud, que nasceu com a filosofia soberana.
Mesmo com estes laços não tão invisíveis, foi reforçado o compromisso de se criar um ecossistema de ponta para o desenvolvimento de IA na Europa, combinando investimentos públicos e privados. Anunciou-se também um consórcio de "bens comuns digitais" liderado por Itália e Holanda para criar infraestruturas de nuvem compartilhadas e soberanas.
Geopoliticamente, o presidente francês e o chanceler alemão2 foram enfáticos em seus discursos sobre a necessidade de a Europa não ser um "vassalo" tecnológico dos EUA e da China. Com a pressão de Donald Trump para que o bloco afrouxe as rédeas dos regulamentos sobre as big techs, eles defenderam uma "preferência europeia" em tecnologia, inclusive em contratações públicas.
Pontos em aberto e omissões
Apesar das boas notícias, a cúpula e sua declaração final deixaram questões cruciais sem resposta. A principal omissão foi um debate aprofundado sobre a dependência de hardware e infraestrutura. Embora a declaração mencione investimentos em semicondutores, ela não aborda a realidade esmagadora: a soberania digital europeia é construída sobre uma base de chips e componentes de rede majoritariamente projetados nos EUA e fabricados na Ásia. Empresas como a SiPearl trabalham para mitigar isso, mas a escala do desafio é imensa.
Outro ponto em aberto é a real viabilidade de competir com os hyperscalers de nuvem americanos em dimensão de mercado. A declaração da cúpula incentiva o uso de compras públicas para apoiar fornecedores da UE, mas disputar em preço, performance e na vastidão de serviços oferecidos por AWS, Azure e Google Cloud, que dominam dois terços do mercado global, é uma tarefa monumental.
Por mais imperfeita que tenha sido a cúpula, um caminho novo começa a ser trilhado e pode servir de exemplo para o resto do mundo. Uma fase de transição entre a dependência total e o surgimento de alternativas. Tanto em hardware quanto em software. Se Berlim ainda não ofereceu uma solução definitiva, fez um diagnóstico honesto e o início de uma nova fase na jornada digital da Europa: uma fase de pragmatismo, onde o idealismo da regulação encontra a dura realidade da competição global. Agora é ver se as promessas de soberania não virarão apenas um engodo do afrouxamento da regulação.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




