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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Dois estrangeiros entram numa barbearia em Xinjiang…

Futuro das antigas "Regiões Ocidentais": nó geoestratégico, rico em energia, multicultural e multirreligioso da Nova Rota da Seda "moderadamente próspera"

Xinjiang, China (Foto: THOMAS PETER / Reuters)

YUTIAN, NA ROTA DA SEDA DO SUL – Estamos na estrada no sul de Xinjiang, após um exaustivo ir e vir no Taklamakan, atravessando dunas de areia para visitar a "tribo perdida"/aldeia de Daliyabuyi, situada bem no meio do deserto, e depois de volta ao nosso hotel moderno lindo de morrer no oásis de Yutian. É meia-noite, acabamos de terminar nosso banquete gastronômico uigur, e só falta uma coisa: fazer a barba.

As vantagens de estarmos na estrada em Xinjiang para rodar um documentário com o apoio de uma equipe de produção formada por craques – os motoristas inclusive – é que eles sabem tudo. "Sem problema", diz um dos motoristas, "tem uma barbearia do outro lado da rua". Na verdade, um bulevar cintilando à meia-noite. Lojas ainda abertas. A vida prossegue normalmente no Uigurstão.

Com meu amigo Carl Zha, atravessamos a rua e entramos na barbearia, só para mergulhar em uma fabulosa fatia da vida (uigur), cortesia de dois jovens barbeiros e seu parça, um garoto estiloso que jogava videogame compulsivamente no celular, que parece saber tudo sobre o bairro (do qual talvez ele seja o chefão).

Eles nos contam tudo sobre sua rotina diária, sobre como andam os negócios, o custo de vida, esportes, a vida no oásis, a paquera de garotas, suas expectativas para o futuro. Não, eles não são refugiados de campos de concentração. Nem escravos em trabalho forçado. Uma hora e meia com eles e você tem um PhD em estudos sociais uigur, ao vivo. Com o bônus adicional de conseguir um corte de cabelo (Carl) e barba feita (eu mesmo) por menos de 10 dólares à uma da madrugada.

Estávamos prontos para o dia seguinte na estrada – quando formalmente concluímos a tríade da Rota da Seda: seda, jade e tapetes no lendário oásis de Khotan – vendo como os tapetes há séculos são produzidos.

E jade no próprio Yutian, que historicamente não é tão famoso quanto Khotan, mas que hoje se orgulha de uma empresa de jade estado da arte, que realiza desde a mineração até o refinado produto final, incluindo os do grau mais fino: o jade preto e o branco.

Na verdade, é o quarteto da Rota da Seda, porque temos que acrescentar as facas, fabricadas no pequeno oásis de Yengisar, a capital mundial da produção das facas incrustadas de pedras preciosas. Todos os homens uigur carregam uma faca: como signo de masculinidade e para cortar os suculentos melões de Xinjiang sempre que preciso.

É claro que, por toda a Rota da Seda do Norte, ficamos, o tempo todo, à espreita de trabalho escravo e de campos de concentração a serem devidamente reportados às agências de inteligência ocidentais. Então, a caminho de Aksu partindo de Kucha, avistamos uma senhora em meio aos vastos campos de algodão.

Começamos a conversar e descobrimos que ela não estava colhendo algodão, e sim limpando caminho na plantação para que a máquina chegasse e começasse a colher algodão de forma mecanizada. Ela nos contou tudo sobre o seu dia a dia: ela era uma uigur residente no local, trabalhava nesses mesmos campos de algodão – de propriedade privada – há mais de duas décadas, vivendo com sua família e recebendo um salário decente. Ela nunca havia visto trabalho forçado ou um campo de concentração em toda a sua vida.

Curtindo a vida uigur real em cidades-oásis

Por toda as Rotas da Seda Norte e Sul, nas principais cidades-oásis, de Turfan e Kucha a Khotan e Kashgar, vimos a vida cotidiana uigur nos sendo apresentada sem filtros, por uigures e em meio a uigures. Nunca se falou sobre política.

Fomos convidados a suas vastas casas – amplos pátios, vinhas subindo pelo telhado –, fomos a dois casamentos, um relativamente discreto, em um hotel quatro estrelas, e o outro uma produção Bollywoodiana no melhor restaurante de Kashgar.

Conversamos com barbeiros, padeiros, donos de bazares, empresários homens e mulheres. Provamos com gosto sua espetacular cozinha; sim, o sentido da vida está contido em uma perfeita tigela de laghman, acompanhada do pão naan perfeito.

Mais que isso, uma obsessão que eu trazia desde minha primeira viagem nas Rotas da Seda, em 1997, logo após a devolução de Hong Kong: eu queria repetir e ir mais fundo na estarrecedora história daquelas cidades-oásis da Antiga Rota da Seda, seguindo, mais uma vez, os passos do meu cara favorito: o monge itinerante Xuanzang, dos primeiros tempos da dinastia Tang.

Essa atualização da Jornada Rumo ao Oeste foi, de tantas maneiras, uma Jornada às "Regiões Ocidentais" Budistas antes de elas terem se tornado parte da China.

Tanto Turfan quanto Kucha eram escalas importantes na Jornada Rumo ao Oeste de Xuanzang, em inícios do século VII. Em seguida, equipado com camelos, cavalos e guardas, ele cruzou as montanhas Tian Shan, encontrou-se com o cã dos Turcos Ocidentais (que vestia uma túnica de seda verde e uma faixa de seda de 3 metros de comprimento em torno da cabeça) às margens de um lago de azul profundo, o Issyk-kul (no atual Quirguistão) e seguiu a pé até Samarcanda (no Uzbequistão de hoje).

Tudo isso é como uma miniatura de jade representando o fascínio da Rota da Seda – mesclando a conexão entre a cultura chinesa, o budismo, os sogdianos (o povo persa que era o principal elo do comércio da Rota da Seda e também a comunidade imigrante mais influente na China durante a dinastia Tang) e a própria Pérsia.

Em Samarcanda, Xuanzang foi pela primeira vez exposto à extremamente rica cultura persa – tão diferente da igualmente sofisticada cultura chinesa. E Samarcanda – e não Roma – era o principal parceiro comercial do reino independente de Gaochang, no século V e, mais tarde, da dinastia Tang.

O que nos traz a alguns fascinantes aspectos geoestratégicos e geoeconômicos das Antigas Rotas da Seda.

Muito poucas pessoas, além dos melhores acadêmicos – e dos planejadores econômicos do entorno de Xi Jinping – sabem que o principal ator da economia das Rotas da Seda, principalmente durante a dinastia Tang, do século VII ao século X, era... a própria dinastia Tang. Tratava-se, acima de tudo, de financiar as então "Regiões Ocidentais" em seu sério confronto militar com os Turcos Ocidentais.

Tínhamos, então, exércitos Tang posicionados ao longo dos oásis da Rota da Seda do Norte, com um detalhe interessante: a maioria deles não era composta de chineses, mas sim de habitantes locais de todo o corredor Gansu e das "Regiões Ocidentais".

Houve um incessante vai e vem de conquistas e derrotas. Por exemplo, a dinastia Tang perdeu o importantíssimo oásis de Kucha para os tibetanos, entre 670 e 692. Resultado: o aumento de gastos militares. Nos anos 740, a dinastia Tang enviou nada menos que 900 mil peças de seda por ano para quatro quartéis-generais nas Regiões Ocidentais: Hami, Turfan, Beiting e Kucha (todos oásis importantes da Rota da Seda). Isso é que se chama apoiar as economias locais.

Algumas datas nos mostram a alteração incessante do cenário geoestratégico. Comecemos com o início dos anos 800, quando os uigures de fato dominaram Turfan. Mas então, o Cã uigur conheceu um mestre de Sogdiana – as terras no entorno de Samarcanda – que apresentou a ele o Maniqueísmo, a fascinante religião fundada na Pérsia por Mani, no século III, segundo a qual as forças da luz e da sombra travam uma eterna luta pelo controle do universo.

O Cã uigur, então, tomou uma decisão fatal: ele adotou o Maniqueísmo – registrando sua doutrina em uma placa de pedra trilíngue (em sogdiano, uigur e chinês).

A longa marcha do Budismo à Região Autônoma

O Império Tibetano também era muito forte em fins dos anos 700. Nos anos 780, eles entraram em Gansu e, em 792, conquistaram Turfan. Em 803, entretanto, os uigures recuperaram Turfan. Mas então, os uigures que ainda viviam na Mongólia foram derrotados pelos quirguizes em 840; e alguns deles foram parar em Turfan, ali criando um novo estado: o Canato Uigur, cuja capital era a cidade de Gaochang, que tive o prazer de visitar.

Foi apenas então que Turfan se tornou uigur e passou a usar a língua uigur, e não o chinês, no comércio, o que se prolongou por séculos. A economia se baseava, em grande medida, no escambo, com o algodão substituindo a seda como moeda. Em termos religiosos, na dinastia Tang, a população de Turfan era composta de uma mistura de budistas, taoístas, zoroastristas e até mesmo cristãos e maniqueístas. Uma pequena igreja, indício da Cristandade Oriental que usava o siríaco como língua litúrgica, foi encontrada, em inícios do século XX, por arqueólogos alemães do lado de fora das muralhas leste de Gaochang.

O Maniqueísmo, por algum tempo, tornou-se a religião estatal oficial do Canato Uigur. Sua arte era absolutamente excepcional. Mas apenas uma única pintura mural maniqueísta sobrevive nas espetaculares cavernas de Bezeklik. Paguei 500 yuans pelo privilégio de vê-la, guiado por um culto jovem pesquisador uigur.

A razão de as pinturas murais maniqueístas terem desaparecido é que, por volta do ano 1000, o Canato Uigur decidiu se tornar budista, abandonando de todo o Maniqueísmo. Até mesmo a hoje famosa caverna 38, em Bezeklik (a que visitei, onde era proibido fotografar), mostra evidências dessa conversão: as cavernas tinham duas camadas, a camada maniqueísta sob a camada budista.

Em termos políticos, esse vai e vem continuou com a mesma intensidade: essa é a história da Rota da Seda em seu apogeu. Em 1209, os mongóis derrotaram o Canato Uigur em Turfan – mas não incomodaram os uigures. Em 1275, os uigures se aliaram ao lendário Kublai Cã. Mas os camponeses rebeldes acabaram por derrubar a Pax Mongolica e estabelecer a dinastia Ming no século XIV, embora Turfan tenha permanecido fora das fronteiras da China.

Uma data crucial é 1383: Xidir Khoja, um muçulmano, conquistou Turfan e forçou todos a se converterem ao Islã: situação que permanece até hoje. Pelo menos na superfície: quando você pergunta às pessoas dos oásis de Xinjiang se elas são muçulmanas, muitas se recusam polidamente a responder. O passado budista permanece – no inconsciente coletivo – e visivelmente, nas espetaculares ruínas de Gaochang.

Xinjiang, o que é importante, permaneceu independente da China até 1756, quando os exércitos da dinastia Qing tomaram a região. No mês passado, estávamos na estrada durante a celebração do 70º aniversário da fundação da Região Autônoma Uigur de Xinjiang. Xinjiang inteira estava coberta de bandeiras vermelhas e de faixas com o número "70".

Esse é o futuro das antigas "Regiões Ocidentais": um nó geoestratégico, rico em energia, multicultural e multirreligioso da Nova Rota da Seda de uma China "moderadamente próspera".

Tradução de Patricia Zimbres

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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