É a crise, imbecil!
É pela crise ou por sua intensificação que as sobras de natureza são arrasadas; que o trabalho, em nome da superação da mesma crise, é precarizado ao rés do vil, do indescritível e do aviltante; que velhas e obsoletas tradições societárias como a escravidão, o machismo, a superstição e o obscurantismo são resgatadas e potencializadas para, é claro, "superar" a crise
Não é que há crise; essa conversa é sempre mal-contada. A crise, veja bem, é a principal instituição do sistema do capital. Não ousem pensar que são moedas, políticas de créditos, controle inflacionário, mercadorias ou mercados. Nada disso! A majestade é a crise! É o solo firme e estável onde o capitalismo se reproduz "ad aeternum". Importante para o seu funcionamento como o sistema digestivo ou o coração são determinantes para o corpo humano; como o motor é decisivo para um carro ou como as páginas são para a feitura de um livro.
Não é penduricalho, detalhe ou ponto distante e disperso na paisagem. A crise é a base, o fundamento e a possibilidade única de replicação da própria dinâmica de exploração ou super-exploração de imensos contingentes de seres humanos e já plenamente sub-humanizados. Analistas positivistas e economistas neoclássicos irão dizer que, ao contrário, crise é a consequência do mal funcionamento do sistema produtivo porque, em função, das intervenções do Estado, de sindicatos e, blá, blá, blá... Dá nisso!
O pensamento esquemático, previsível e errático opera exatamente assim. Em estreito e atávico combinado de causa e efeito onde o resultado é, portanto, automático! O pensamento histórico, fundado na concretude da vida real e factual e que se presta a dialogar com suas próprias contradições, no entanto, opera em outro sentido. Irá afirmar que a crise não está lá no fim, no encerramento de uma série ou ciclo sócio-produtivo; ao contrário, está em toda a organização do sistema; em toda a sua estrutura e nas conjunturas que gera; se encontra desde a sua concepção original onde o outro é visto apenas como um detalhe a ser submetido e explorado ao nível da coisificação até ao seu desfecho onde despontam imensos excedentes (e não poderia ser diferente!) com uma galáxia de miseráveis e inviabilizados que inexoravelmente, produz.
É pela crise ou por sua intensificação que as sobras de natureza são arrasadas; que o trabalho, em nome da superação da mesma crise, é precarizado ao rés do vil, do indescritível e do aviltante; que velhas e obsoletas tradições societárias como a escravidão, o machismo, a superstição e o obscurantismo são resgatadas e potencializadas para, é claro, "superar" a crise. O bastante curioso é que ainda assim, crises e mais crises pululam sempre e cada vez mais fortes, amplas, largas e profundas a exigir cada vez mais obviamente, sacrifícios e sacrifícios de uma população já anulada por toda sorte de privação .
Sob o capitalismo, crise não é acontecimento, evento ocasional; bem mais que isso, é sua condição. É o agente da realização do capital não só como forma produtiva e organizacional mas como dispositivo que inaugura, que funda sociabilidades, padrões comportamentais e civilização.
Ora pois, no "moinho satânico" do capital ela se afirma como elemento regulador; garante que a sempre desencontrada relação entre oferta e demanda seja minimamente equalizada; que excedentes encontrem destino e rumo, mesmo que no lixão e no desterro; que sobras e excessos não influam sobre fluxos e intercâmbios de bens e serviços e suas necessárias inovações.
Quando um solícito empresário se põe a produzir uma latinha de ervilhas na incerteza de que esse item será ou não consumido o empreendedor para não "dar com os burros n'água" toma antes uma série de medidas. Opera em toda a cadeia produtiva das ervilhas. Negocia com os informais, foge de tributação, quer trabalho barato, fácil e constante e tanto faz se for escravo, análogo ao escravo, infantil ou insalubre; exige isenções, anistias e financiamentos; quer desonerar compromissos, necessita de pacotes de estímulos e benefícios fiscais. Mas... Quem paga a conta desse reino de maravilhas?
É fácil! O conjunto da população, agentes econômicos diretos. Essa lógica é objetivamente geradora de crises nos bolsos, nas bolsas e na vida cotidiana das pessoas. Não tem jeito! Crises são transferidas como uma virose que nos invade pelas narinas e sob o tacape certeiro do capital essa transferência é determinação funcional e operativa para a fluência do sistema de mercado porque é preciso proteger empreendedores.
Milhões de toneladas de alimentos são descartadas em acostamentos de estradas; rios de leite são despejados em esgotos; centenas de milhares de unidades habitacionais prontas e acabadas se acham indisponíveis porque seus preços ainda não estão interessantes para imobiliárias e incorporadoras enquanto milhões de pessoas vivem em cidades informais ou sub-cidades e absolutamente anômicas; sob marquises, em bancos de praças, debaixo de pontes ou em caixas de papelão.
Esse é o fantástico mundo da crise nossa de cada dia, este gigante planetário; esta engrenagem transcontinental que faz girar o produtivismo ensandecido e alucinado do capitalismo transformador de coisas brutas em sensíveis e conversor de matéria sensível, viva e vivificada em coisa bruta e brutalizada.
Sei que o horror bestializado do senso comum não irá entender o que essas miúdas linhas tentam dizer, senso que é, aliás, resultado e componente da justificação da crise, mas é o que a história nos mostra e revela.
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