E se...
Eulália, a mulher com um parafuso a mais na cabeça, tinha jeito para tudo
O parto normal levou menos de uma hora.
“Fácil, fácil, nem doeu, minha netinha veio escorregando.” Essa foi a graça sem graça da sogra e avó, já a provocar a mãe do bebê.
Nascia Eulália, de pouco choro e muito riso. Espigada, com extensos 53 centímetros.
Nenhuma surpresa, na família Martins ninguém ficava abaixo de um metro e oitenta. O pai, Rubenval, quase não precisava de escada para trocar lâmpada e dona Sandra, jogadora de basquete da escola, dispensava salto alto.
Os irmãos se exibiam com namoradas que lhes batiam nos ombros, mas e Eulália? A mais alta da sala desanimava os pretendentes, sempre muitos centímetros abaixo.
“Varapau, trinca-espinha, pau de sebo.” Era o que ouvia com os olhos no chão e as mãos crispadas, ainda nas primeiras séries. Então, Eulália reagiu e passou a rebater com “rolha de poço, pigmeu, ponto e vírgula.”
Pode ser que a coragem de enfrentar o bullying tenha partido dos conselhos da avó, ou das conversas com a doutora Isaura, o certo mesmo é que todos assistiram à valente Eulália desprezar provocações e, como se dizia naqueles tempos, “levar a vida na maciota”.
Sem ligar muito para o que parecia problema, Eulália contornava os obstáculos. André, o primeiro namorado, tocava Pink Floyd e era bom em Geometria. Empolgada, ela descobriu que os 8 centímetros de diferença não faziam tanta diferença. O primeiro beijo foi na esquina, Eulália pisou no asfalto, enquanto André, na calçada, se equilibrava na ponta dos pés.
O beijo de Rodolpho – segundo namorado - era com B maiúsculo, já a altura conseguia ser mais minúscula que a de André. Eulália não se atrapalhou, foi com o garoto até as escadas do prédio em que morava. Com ele dois degraus acima, tudo se encaixou.
No cursinho pré-vestibular um amor sonhado e secreto: Claudecir, o professor de Química. Aos olhos de Eulália, um colosso.
É feio, provocavam as colegas.
Tem orelha de abano, implicavam os rapazes
Usa fundo de garrafa, desdenhava um grandalhão enciumado.

Eulália, na frente de uma garrafa de cerveja, projetava o mesmo Claudecir: “e se” os óculos fossem mais leves? “E se” com o novo visual reluzissem os olhos verdes e as vastas sobrancelhas?
“E se” Claudecir tivesse cabelos e unhas bem cortados “e se” se vestisse de um jeito mais despojado? Bastava o “e se” que Claudecir se transformava em um galã.
E as orelhas? Ora, ora, tanto para admirar em Claudecir, para que perder tempo com as orelhas?
Claudecir, casado e pai de 2, nunca soube como era irresistível para a aluna que sempre sentava na frente.
Num boteco perto da faculdade, Vanderlei levou-a para um virado à paulista. A bisteca queimada, o tutu quase gelado... Quando Vanderlei se levantou para reclamar, Eulália segurou-lhe o pulso. “E se a gente comer o arroz que tá soltinho com esse ovo de gema mole e sair logo daqui?” Pagaram a conta e racharam a diária de um motel vizinho ao Minhocão.
Vanderlei não estava em seus melhores dias, Eulália dormiu de mãos dadas com ele e na despedida disse que a vontade tinha aumentado. E se na semana que vem...
Na outra segunda-feira a bisteca tava no ponto, Vanderlei também. A tarde incandescente virou fogo que ardeu até a madrugada.
A artesã Marlene, primeira namorada de Eulália, tinha ótima conversa, sabia fazer massagem e era craque na bijuteria. O único problema – e que problema – era o mau hálito. E se... A solução de Eulália foi espantosa: parou de escovar os dentes. Em igualdade de condições, a dupla subiu de carona até o sul da Bahia.
Eulália viveu a valorizar as virtudes de seus amores, o que podia parecer defeito ela chamava de “característica”.
Com Emanuel foram 15 anos de união. Vendedor de enciclopédias, despachante, ganhava menos da metade que ela. Os dois viajavam para São Vicente e Caxambu por conta dele, para Nova York e Buenos Aires por conta dela. Eulália se apaixonou por seu homem dos ralos fios de cabelo às unhas dos pés. Na barriga peluda e quentinha ela encostava a cabeça para cochilar e sonhar, enquanto descalçava as sandálias 42.
Que homem era aquele a fincar o cotovelo na mesa, a mão suportando o queixo para ouvi-la. Emanuel escutava sua mulher sem desviar os olhos, sem pressa. O mundo parado por ela e pra ela.
Bonito nunca foi, mas a maneira como dobrava o jornal, o jeito que impostava a voz para ler o horóscopo. É, ninguém segurava a garrafa de vinho para servi-la com aquela classe. Jeitoso o Emanuel.
O velório de Eulália foi numa tarde de verão. Todos ouviram uma canção de Chico Buarque e Francis Hime em que tinha neve no sertão.
Por fim, o discurso da sobrinha: “Minha tia tinha um parafuso a mais. Nessa passagem se dedicou a ajeitar as coisas aqui por perto, na próxima vai pacificar o mundo.”
Sejamos Eulália, alguém gritou. Todo mundo aplaudiu.
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