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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Educação inclusiva: entre o decreto e a realidade

A educação inclusiva não é tarefa de um decreto, mas de um país inteiro

Sara York - Cordão Girassol PCD (Foto: Tatiana Ferro / Divulgação / Café Filosófico)

No dia 20 de outubro de 2025, o Governo Federal publicou o Decreto nº 12.686, que institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, um marco normativo que promete garantir o direito à educação em um sistema educacional inclusivo para estudantes com deficiência, com transtorno do espectro autista (TEA) e com altas habilidades ou superdotação — “sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades”.

O texto, que chega após décadas de disputas políticas, jurídicas e pedagógicas em torno da educação especial, renova o compromisso brasileiro com a inclusão, mas também reacende um velho debate: como transformar boas intenções em práticas reais dentro das escolas?

O decreto e os caminhos

A nova política reafirma o que a Constituição, a LDB e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência já estabelecem: toda pessoa tem direito à educação em um sistema inclusivo, ou seja, dentro da escola comum, com os apoios necessários.

Entre as diretrizes, destacam-se:

• A presença de equipes multidisciplinares — com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e pedagogos especializados;

• A formação continuada de professores para lidar com a diversidade;

• A acessibilidade plena dos espaços e dos recursos pedagógicos;

• E o reconhecimento de que a diferença é constitutiva da aprendizagem, e não um obstáculo a ser removido.

O Decreto também amplia o público-alvo da educação especial, incluindo pessoas com TEA e estudantes com altas habilidades, reconhecendo a pluralidade das formas de aprender e conviver.

O papel da escola e da sociedade

Mas se a lei chega repleta de promessas, a realidade brasileira ainda é marcada por lacunas estruturais. Escolas sem acessibilidade arquitetônica, professores sem formação adequada, ausência de materiais adaptados e escassez de profissionais de apoio são problemas que se repetem de norte a sul do país.

Como integrante do GT PCD, acompanho de perto o quanto as políticas públicas muitas vezes naufragam no cotidiano da sala de aula. A escola inclusiva exige mais do que rampas e intérpretes — ela demanda uma mudança de cultura, uma virada ética que reconheça o valor da diferença e compreenda que a educação só é pública quando é para todos.

Incluir, nesse contexto, não é integrar à força nem segregar por comodidade. É reconfigurar o modo de ensinar, avaliar e conviver, reconhecendo que a singularidade de cada corpo e mente é parte da inteligência coletiva que sustenta o processo educativo.

Os desafios da implementação

O Decreto nº 12.686 chega em um cenário de profundas desigualdades regionais. Municípios com baixa arrecadação dificilmente conseguem garantir a infraestrutura mínima exigida. A ausência de investimento federal em tecnologia assistiva, transporte acessível e formação continuada ameaça transformar a política em mais um documento simbólico, sem impacto real.

Outro ponto sensível é o financiamento. A inclusão requer recursos específicos e permanentes. Sem orçamento vinculado, a política corre o risco de ficar restrita a experiências pontuais e ao voluntarismo de gestores e educadores sensíveis à causa.

A resistência cultural também é um obstáculo. Parte da comunidade escolar ainda vê a presença de estudantes com deficiência como um “peso” ou “impossibilidade pedagógica”, quando, na verdade, é justamente a diferença que ensina o que há de mais essencial: a convivência humana.

O compromisso coletivo

A educação inclusiva não é tarefa de um decreto, mas de um país inteiro. Cabe ao poder público garantir as condições materiais; às universidades, formar profissionais comprometidos com a diversidade; e à sociedade civil, vigiar e cobrar o cumprimento da lei.

Para nós, do GT PCD, o desafio é transformar o decreto em ação concreta: mapear as condições reais das escolas, dialogar com as redes de ensino, produzir indicadores, e construir pontes entre políticas públicas e vidas reais.

Afinal, o sentido da inclusão não está apenas em abrir as portas da escola, mas em reconhecer quem sempre esteve batendo do lado de fora.

Entre a norma e a experiência

O Decreto nº 12.686 é um passo importante, mas não basta decretar a inclusão — é preciso vivê-la.

A verdadeira política inclusiva nasce do encontro entre sujeitos, da escuta atenta e da coragem de refazer práticas que pareciam consolidadas.

Ela exige tempo, investimento e, sobretudo, compromisso ético.

Como educadora, travesti e integrante do GT PCD, reafirmo:

a educação inclusiva não é favor nem concessão, é direito — e direito não se discute, se garante.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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