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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Em Kuala Lumpur, o Brasil mudou o cardápio

Com 23% das reservas mundiais de terras raras e novos mercados, o Brasil tornou-se o elo indispensável entre recursos estratégicos e inovação global.

Presidentes Lula e Donald Trump durante a 47ª Cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático - ASEAN em Kuala Lampur, Malásia. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

O encontro entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald J. Trump, neste domingo (26/10/2025), em Kuala Lumpur, não foi apenas mais um ato diplomático entre dois líderes de temperamentos opostos. Foi um encontro de épocas — o velho mundo das potências que impõem e o novo mundo dos países que propõem.

Lula chegou com dados, serenidade e o tipo de poder que não precisa de armas para ser respeitado: recursos e legitimidade. Trump chegou com pressa, pressionado pela inflação que cresce nos Estados Unidos desde a imposição das tarifas de 50% sobre o café, a carne e a soja brasileiras — tarifas que pretendiam punir, mas acabaram punindo o próprio consumidor americano.

Sob o véu das formalidades, o encontro expôs uma realidade que Washington há tempos tenta evitar: o poder está migrando para onde estão os recursos essenciais.

A diplomacia da matéria-prima

O Brasil, que durante décadas foi visto como fornecedor de grãos e metais, agora ocupa o centro das negociações sobre o que realmente define a nova economia: as terras raras. Esses 17 elementos químicos — base de semicondutores, satélites, painéis solares, turbinas e equipamentos militares — são o sangue invisível da era digital.

Os números falam por si. A China controla 48% das reservas globais, os Estados Unidos apenas 2%, enquanto o Brasil detém 23% — a segunda maior reserva do planeta. É nesse dado que repousa o nervo do encontro em Kuala Lumpur. Para os EUA, que buscam reduzir sua dependência de Pequim, a aproximação com Brasília deixou de ser opção e passou a ser questão de sobrevivência estratégica.

Trump chegou ao diálogo tentando recuperar o tom autoritário de outrora, mas percebeu que o roteiro havia mudado. Lula não pedia concessões: oferecia parcerias com propósito, diálogo entre iguais. “As equipes começam a trabalhar imediatamente”, disse o presidente brasileiro, ao lado do secretário do Tesouro americano e do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.

Um Brasil que aprendeu a negociar

Nos bastidores, o tom foi firme. O presidente brasileiro deixou claro que o país não aceitará a lógica de sanções unilaterais, como as impostas recentemente a ministros do Supremo Tribunal Federal. “O Brasil respeita o devido processo legal. O que não respeita é a interferência disfarçada de diplomacia”, teria dito, segundo relatos da delegação.

A questão de Jair Bolsonaro surgiu apenas de forma lateral, em uma pergunta de jornalistas, mas Lula a transformou em argumento de soberania. Reafirmou que o sistema judicial brasileiro agiu dentro das leis e que a aplicação da chamada Lei Magnitsky foi uma injustiça que ameaça o equilíbrio entre as nações.

O gesto mais simbólico, porém, foi outro: Lula ofereceu-se para mediar o diálogo entre Washington e Caracas. Um aceno a Nicolás Maduro, mas também uma mensagem a Trump — o Brasil não é vassalo nem satélite, é ponte e ator.

A hora e a vez do Sul Global

A leitura global é inequívoca. O Brasil, ao lado de China, Índia e África do Sul, consolida o BRICS como eixo de poder alternativo, capaz de reconfigurar fluxos de comércio e inovação. A entrada de países árabes e africanos nesse bloco amplia ainda mais o alcance político dessa nova ordem.

Enquanto isso, os Estados Unidos lutam para preservar sua hegemonia industrial diante da escassez de insumos estratégicos. Sem acesso às terras raras e pressionados por uma inflação que já ultrapassa 5,2%, o país de Trump precisa negociar.

O Brasil percebeu esse momento e age com cálculo. Ao ampliar mercados com a Ásia e fortalecer acordos bilaterais na América Latina, transforma dependência em influência. Em Kuala Lumpur, Lula não discursou sobre ideologia — falou de logística, cadeias produtivas e tecnologia verde. Foi ouvido com atenção.

O subsolo como poder e metáfora

As terras raras — ítrio, lantânio, neodímio, gadolínio — são mais do que minérios: são o passaporte da autonomia industrial. Ter 23% dessas reservas é deter a capacidade de decidir quem avança e quem estagna na corrida tecnológica.

O Cerrado, tantas vezes ameaçado pela ignorância, pode tornar-se a espinha dorsal da economia do futuro. E é essa consciência que muda o tom da política externa brasileira. O país, que já se ajoelhou diante do capital financeiro, agora se ergue sobre o valor real da sua geologia e da sua biodiversidade.

Em Kuala Lumpur, o que parecia uma simples reunião bilateral foi, na verdade, uma demonstração pública de que o século XXI já não obedece ao compasso de Washington. O poder não se mede apenas por PIB, mas por relevância material. E o Brasil tem o que falta aos outros: energia, alimentos, estabilidade política e minerais estratégicos.

O planeta está sendo redesenhado — não por tratados, mas por necessidade. E, dessa vez, o Brasil não entrou no jogo como convidado. Entrou como indispensável.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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