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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Entre oligarquias e algoritmos: diálogo na crise

'A superação da crise contemporânea exige mais do que denúncia', escreve a colunista Sara York

Congresso Latino-Americano de Medicina Social e Saúde Coletiva (Foto: Sara York)

Durante o XVIII Congresso Latino-Americano de Medicina Social e Saúde Coletiva, realizado neste mês, os debates extrapolaram os limites da saúde coletiva para tocar em temas urgentes como política, representatividade e as múltiplas crises que atravessam o presente. Em meio a esse cenário, dois nomes se destacaram por suas contribuições provocadoras: a socióloga e ecossocialista Sabrina Fernandes, integrante da plataforma Tese Onze, e o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle. Ambos, em registros distintos, colocaram em questão o papel da universidade, das redes sociais e dos movimentos populares diante da crise do pensamento e da política contemporânea. Principalmente por que apesar da sala lotada, tive a impressão de ser a única travesti naquele espaço e a entrevista ocorreu nesse espaço.

Sabrina Fernandes: Das oligarquias rurais à policrise planetária

A socióloga, ecossocialista e militante do Pacto Ecossocial do Sul, Sabrina Fernandes, participou do XVIII Congresso Latino-Americano de Medicina Social e Saúde Coletiva trazendo uma análise que conecta as lutas locais no Brasil a processos globais. Em entrevista exclusiva, ela falou sobre as estruturas de poder em Goiás, a crise ecológica e a ausência de representatividade trans nos espaços progressistas.

Sabrina, você é uma militante ativa no Sul Global e uma das vozes mais influentes entre os jovens. Como você observa esse momento em que as oligarquias e famílias tradicionais parecem estar voltando a dominar o cenário político?

Na minha militância, que é latino-americana - especialmente por meio do Pacto Ecossocial do Sul - , eu estou muito ocupada com essas discussões. E, como você disse, sendo de Goiânia, conhecendo de perto esse cabresto milenar imposto por algumas famílias oligárquicas, é até um pouco assustador ver figuras clássicas da opressão local, como Ronaldo Caiado, se tornando destaques da direita brasileira.

Mas é importante lembrar que Goiás é um território de trabalhadores rurais, de lutas quilombolas, indígenas, de resistência contra o agronegócio. A partir dessas experiências, conseguimos entender conexões mais amplas, relacionadas ao mundo inteiro.

E como essas lutas locais se articulam com o cenário global?

Os nossos aprendizados no Brasil - na luta por reforma agrária, por soberania alimentar - nos ajudam a compreender o que eu chamo de policrise planetária. Estamos falando de mudança climática, de crise ecológica, de preços dos alimentos, até de fenômenos como o tarifaço promovido por Trump. Tudo isso está interligado.

Voltar aos nossos movimentos sociais, à nossa luta histórica anticolonial, é também aprender sobre o que está acontecendo fora do Brasil e estreitar as nossas estratégias por aqui.

Como eu estava como convidada em Harvard no início do ano, e sou travesti - praticamente fui expulsa pelas imposições do governo Trump. Isso mostra que os ataques são coordenados e partem de estruturas globais de poder. Como você se sentiu ao participar de uma mesa como essa, sem nenhuma representação trans?

Olha, é algo que ainda falta muito para a esquerda e para os espaços progressistas compreenderem. Não se trata apenas de preencher uma cota, ou de "ter que ter uma pessoa assim". É mais profundo. Quando falta uma mulher, uma pessoa trans, uma pessoa negra ou indígena numa mesa, há uma perspectiva ausente. E isso torna o conhecimento incompleto.

A ausência de vozes trans nesse contexto é um reflexo de um problema estrutural maior?

Com certeza. Neste momento, os ataques a pessoas trans estão se intensificando no Reino Unido, nos Estados Unidos - e isso tem se dado por vias judiciais, decretos, ações institucionais. Os corpos trans estão sendo cada vez mais marginalizados, e isso não para por aí.

É fundamental entender que não é apenas uma questão de empatia ou solidariedade distante. Estamos unificadas porque as ferramentas de opressão e controle dos corpos se estendem para todas nós. Eu, como mulher cis, também sou prejudicada toda vez que um ataque a pessoas trans ocorre.

Que tipo de ação você acredita ser necessária diante desse cenário?

A gente precisa formar alianças reais. Compreender que essas lutas são comuns, que estão interligadas, e que a transformação só virá se conseguirmos romper com as estruturas de exclusão, inclusive dentro dos próprios movimentos que se dizem progressistas.

A Visão de Vladimir Safatle: A Universidade e as Redes Sociais

Também durante o XVIII Congresso Latino-Americano de Medicina Social e Saúde Coletiva, o filósofo Vladimir Safatle compartilhou reflexões contundentes sobre os desafios da universidade brasileira, o papel das juventudes e os efeitos das redes sociais no debate público. A seguir, trechos da conversa:

Seria importante que as mesas contassem com diversas representações sociais trans, sobretudo dado o que aconteceu nos últimos meses nos EUA?

Sim, porque acho que é fundamental. São pessoas que sentem da maneira mais brutal possível todos os sistemas de vulnerabilização social. Acho que elas são as primeiras a falarem nessas circunstâncias. É um desafio importante para a universidade brasileira.

Você é uma das principais vozes ouvidas por jovens no país. Muitos te seguem e acompanham seu pensamento. O que você diria às juventudes sobre se inspirarem na academia e ocuparem esse espaço?

O que é muito importante lembrar sobre a universidade é que ela não é uma instituição obsoleta - muito pelo contrário. Ela ainda consegue pautar muita coisa, muitos debates no interior da sociedade civil. A universidade é um espaço de disputa, e ela precisa ser politizada. No sentido mesmo de ser cada vez mais capaz de escutar e de ouvir as pessoas que realmente precisam ser escutadas e ouvidas. E, claro, precisa de jovens.

Estamos formando filósofos atualmente?

Filósofos a gente está formando, sim. O problema é que eles entraram num momento extremamente difícil da universidade brasileira. Essas pessoas que hoje têm 30, 30 e poucos anos, tiveram que passar por situações inacreditáveis nos últimos anos - Bolsonaro, pandemia, cortes de verba. Foi toda uma geração que, de certa forma, foi destroçada. É triste dizer isso, mas é verdade.

Em nossa coluna mais recente, eu tenho escrito que o grande problema das redes sociais é que elas proliferam as minhas verdades. Isso é algo que o próprio Chantal Mouffe já apontava. Mas, no nosso contexto, o que vemos é que, à medida que vou tendo só certeza das minhas verdades, a verdade do outro passa a ser secundária. As redes sociais não seriam, então, um bom espaço de debate?

Essa é uma questão muito importante. O que acontece é que as redes impõem uma gramática própria, uma forma de visibilidade e percepção que nem sempre é a melhor. Elas não são neutras. Elas estabelecem o tipo de debate que é possível - e, muitas vezes, esse não é o tipo de discussão que precisamos. Eu, pessoalmente, prefiro a discussão corpo a corpo, olho no olho, porque é ali que ainda se pode construir um real diálogo.

Conectando os Diálogos

Apesar das diferenças de linguagem e foco, os depoimentos de Sabrina Fernandes e Vladimir Safatle convergem em pontos fundamentais. Ambos denunciam o silenciamento de vozes dissidentes e alertam para os perigos de uma cultura política baseada na reiteração de certezas e na negação do outro. Enquanto Sabrina insiste que a ausência de sujeitos trans, negros e periféricos na formulação do conhecimento é uma forma de opressão que precisa ser rompida, Safatle lembra que a própria estrutura do debate público está comprometida por plataformas que favorecem a polarização e impedem a construção coletiva.

O diagnóstico comum aponta para a urgência de recriar espaços de diálogo autêntico  -  seja na academia, nos movimentos sociais ou nos meios de comunicação. A superação da crise contemporânea, segundo ambos, exige mais do que denúncia: demanda escuta. Escutar quem historicamente foi silenciado. Escutar o incômodo. Escutar o que não se encaixa. Escutar para, enfim, transformar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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