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José Luís Fiori

Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes, 2018)

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Erros e desatinos estratégicos de uma potência que perdeu o prumo

Não é de estranhar o aumento da agressividade retórica, diplomática e ideológica dos EUA e de seus satélites

(Foto: Kevin Lamarque/Reuters)
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No dia 18 de março de 2023, completam-se 20 anos da invasão anglo-americana do Iraque, que foi feita sem motivo legítimo nem aprovação do Conselho de Segurança da  ONU, mas que deixou para trás 300 mil mortos iraquianos e os famosos registros  fotográficos das atrocidades cometidas pelos norte-americanos na prisão de Abu Ghraib. E  assim mesmo, depois de derrotar e destruir o Iraque, os norte-americanos perderam o  controle político do país para o Irã, seu principal competidor e adversário no Oriente Médio. Depois, os Estados Unidos sofreram sucessivos reveses em suas invasões e “guerras sem  fim” no Afeganistão, na Líbia, na Síria e no Iêmen, e em sua fracassada tentativa de  isolamento e asfixia da economia iraniana. Agora estão envolvidos em uma nova guerra,  no território da Ucrânia, sem conseguir definir de forma clara quais são seus objetivos neste  conflito, nem têm a menor possibilidade de alcançar uma vitória definitiva no campo de  batalha sem passar por uma guerra direta com a maior potência atômica do planeta.

Ainda assim, há muitos analistas que avaliam que os Estados Unidos obtiveram uma  vitória estratégica na Ucrânia ao eliminar arestas e estreitar seus laços militares com a  União Europeia, com os “povos de língua inglesa” e com alguns aliados asiáticos tradicionais. Não se tomou em conta, entretanto, que o “bloco” formado pelos EUA e seus  satélites e protetorados militares sempre existiu, desde o fim da Segunda Guerra, e que  nenhum desses países – a começar pela Alemanha, Itália e Japão – deixou de ser ocupado  por bases americanas e transformado em “protetorado atômico” dos Estados Unidos. Não se percebeu, também, que o aumento da convergência militar desses países, liderados pelo  G7, vem se transformando na contraface do seu isolamento cada vez maior com relação  ao resto do mundo eurasiano, africano e latino-americano. Basta observar o apoio cada vez menor que esses países vêm obtendo na sua tentativa de cercar, isolar e asfixiar  economicamente seus inimigos, notadamente o Irã, a Rússia, e mesmo a China, do ponto  de vista da guerra comercial e tecnológica a que vem sendo submetida desde o governo  de Donald Trump.

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Não é de estranhar, portanto, o aumento da agressividade retórica, diplomática e  ideológica dos EUA e de seus satélites, que vêm adotando uma postura cada vez mais  militarista, mesmo sem avaliar as consequências últimas desta sua reação quase irracional  à perda do poder global exercido nos últimos 300 anos. Como se os países do “Atlântico  Norte” e seus pequenos satélites asiáticos estivessem perdendo o rumo e o próprio sentido do absurdo de algumas de suas iniciativas absolutamente destemperadas e quase  ridículas, do ponto de vista da sua disputa global.

A começar pela visita a Taiwan, a presidenta do Congresso Americano, Nancy  Pelosi, feita de forma absolutamente temperamental e juvenil, sem levar minimamente em  conta suas consequências de médio e longo prazo, que acabaram consolidando e  cristalizando a reivindicação e o poder da China sobre sua “ilha rebelde” criada com apoio  militar americano, em 1946. Depois, acumulam-se os discursos destemperados das  autoridades americanas e europeias absolutamente “possuídas” por uma “fobia russa”  semelhante a várias outras que já tiveram no passado, como se a Europa não conseguisse  se manter unida sem a demonização de um inimigo externo, como já foram os islâmicos,  os comunistas e os judeus. Para não falar de episódios quase ridículos, como foi o caso  delirante da “guerra dos balões” iniciada e logo encerrada por um governo Biden  completamente desorientado. Ou a “ordem de prisão” decretada contra o presidente da Rússia por uma instituição criada pelos europeus e inteiramente desmoralizada e  deslegitimizada pelos próprios norte-americanos. Ou ainda, e de forma mais irresponsável,  o envio de um drone militar para a zona de guerra russa, na Crimeia, terminando com a  queda e a perda inconsequente do equipamento derrubado pelos aviões russos sem que  houvesse nenhum tipo de resposta ou continuidade, caracterizando uma iniciativa  inteiramente impensada da parte do governo americano. Tudo isto foi acompanhado de  uma linguagem cada vez mais agressiva e destemperada, que já começou a ser utilizada  pelos dois “homens-bomba” que comandaram a política externa de Donald Trump, Mike  Pompeo e John Bolton, a mesma que segue sendo utilizada pelos dois “missionários liberalinternacionalistas” que comandam a política externa do governo de Joe Biden, Anthony Blinken e Jack Sullivan – com a diferença fundamental que os dois democratas veem o  mundo como uma luta entre o “bem” e o “mal”, e se consideram evidentemente  representantes do “bem”, com a missão de converter o mundo à sua tábua de valores.

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O problema é que por trás desses “desatinos” mais visíveis vem se somando uma  quantidade de erros de cálculo e de concepção estratégica de mais longo prazo, que estão  conduzindo os Estados Unidos e seus satélites, progressivamente, para um “beco sem  saída”. O primeiro deles, mais ligado diretamente ao início da guerra, foi negar-se a  negociar de forma discreta e diplomática a neutralização da Ucrânia e a construção de um  novo mapa de segurança e equilíbrio estratégico de longo na Europa. E o segundo erro,  que foi uma consequência imediata do primeiro, foi boicotar as negociações de paz que  estavam em curso entre a Rússia e a Ucrânia logo na primeira semana da guerra,  apostando no sucesso da guerra econômica que já estava planejada e que seria  desencadeada imediatamente pelos países do G7 contra a Rússia. Duas decisões cruciais,  e dois erros de cálculo estratégico – como a história demonstrará – que foram orientados pela mesma visão estratégica dos “missionários de Biden” que desde o início do governo  democrata vêm tentando dividir e polarizar o mundo, forçando uma nova Guerra Fria entre  países democráticos e países autocráticos, definidos de forma “autocrática” e unilateral pelos próprios Estados Unidos.

Essas duas decisões foram sustentadas na mesma certeza dos americanos e seus  satélites de que poderiam impor uma derrota imediata e humilhante à Rússia, com o estrangulamento de sua economia nacional, através de um pacote de sanções econômicas de dimensões desconhecidas, envolvendo o bloqueio europeu do comércio do petróleo e  do gás russos, o congelamento e expropriação das reservas e ativos russos depositados  nos bancos do G7, e finalmente, através da suspensão de todas as relações financeiras da  economia russa com esses mesmos países e todos os demais que viessem a apoiar as  sanções globais comandadas por norte-americanos e europeus. Nos dois casos,  entretanto, parece que os Estados Unidos e seus satélites erraram redondamente.

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Primeiro, porque a maioria dos Estados do sistema internacional vem se mostrando  extremamente reticente a entrar em uma nova Guerra Fria, e vem resistindo terminantemente a tomar partido no conflito da Ucrânia, negando-se a apoiar as sanções  econômicas aplicadas por americanos e europeus contra a Rússia. Dos 194 países com  assento nas Nações Unidas, só 47 apoiaram essas sanções, sendo muitos absolutamente  insignificantes, como é o caso de Andorra, Mônaco, Islândia, Liechtenstein, Micronésia, San  Marino, ou Montenegro do Norte, entre outros. Em segundo lugar, pesquisas recentes  realizadas por universidades europeias e americanas vêm indicando que a maioria da população mundial que vive fora dos países que compõem a coalizão minoritária dos  Estados Unidos e seus satélites europeus e asiáticos não veem o mundo como eles, não  apoiam a guerra nem as sanções econômicas aplicadas à Rússia, não se consideram  menos democráticos do que os americanos e europeus, e consideram que a “coalizão  ocidental” está envolvida no conflito da Ucrânia em defesa de seus interesses geopolíticos, e não em defesa de valores ou direitos humanos supostamente universais.

Mas o que é pior, do ponto de vista euro-americano, é que depois desses erros  iniciais de avaliação, a “devastadora” guerra econômica desencadeada contra a Rússia não  teve sucesso, ou pelo menos não logrou seus objetivos. Não conseguiu estrangular de  forma instantânea a capacidade financeira dos russos de sustentarem sua ofensiva na  Ucrânia, como tampouco teve os impactos esperados sobre o funcionamento interno da  economia russa, que conseguiu driblar o cerco comercial e financeiro abrindo novos  mercados, redesenhando sua estratégia econômica nacional e alcançando, já em 2023,  segundo o FMI, um crescimento econômico positivo. Neste sentido, erraram uma vez mais  os estrategos americanos e europeus, porque suas sanções financeiras e seu bloqueio  comercial da Rússia acabaram tendo um efeito absolutamente destrutivo sobre as  economias europeias, que enfrentam uma acelerada desindustrialização – como é o caso  da Alemanha – ou uma desintegração social e política – como está se assistindo na França  e na própria Inglaterra, cujas previsões indicam que até 2030 esta já poderá ter se  transformado num país com renda per capita inferior à da Polônia, que foi até hoje uma  fornecedora de mão de obra barata da economia inglesa. Em parte por conta do Brexit, é  verdade, em parte por conta do seu envolvimento cada vez mais agressivo na escalada  europeia contra a Rússia. Crises e desintegrações econômicas e sociais causadas, em  última instância, pelas sanções econômicas que cortaram a energia barata da Europa,  diminuíram a competitividade de suas economias e atingiram em cheio o salário da população, através da inflação e do aumento dos custos de energia e alimentação. Vasos  comunicantes que estão atuando também na atual crise financeira dos bancos americanos  e europeus, premidos pelo aumento da inflação e da taxa de juros, e ainda pela perda de  credibilidade de seus títulos públicos, depois do congelamento e expropriação das reservas e aplicações russas.

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Resumindo: de todos os pontos de vista que se olhe a evolução da conjuntura  internacional, o que se vê é que o bloco formado pelos Estados Unidos e seus satélites  está ficando cada vez mais ilhado, mais agressivo, e mais sem saída. O governo americano  4 de Joe Biden não consegue definir com claridade qual é o objetivo da sua participação cada  vez mais direta na Guerra da Ucrânia. Até onde querem chegar? Quais são suas  expectativas e possibilidades mais além da propaganda? E o mesmo se pode dizer com  relação à política cada vez mais agressiva dos norte-americanos com relação à China:  quais seus objetivos e até onde estão dispostos a chegar na sua disputa pelo Mar do Sul  da China e na sua defesa de Taiwan, enfrentando, neste caso, divisões e fraturas dentro  do próprio bloco euro-americano? Deve-se somar-se a essas incertezas e à perda  progressiva de rumo da política externa americana, o aumento da divisão e da polarização  cada vez mais agressiva da própria política interna dos Estados Unidos, que não permite nenhum tipo de previsão de longo prazo que não seja a agressividade conjunta dos dois  partidos americanos contra a China.

Ao mesmo tempo, é exatamente neste ponto que os norte-americanos vêm sofrendo  seus maiores reveses, e demonstrando maior incompreensão dos acontecimentos,  restando-lhe um apelo cada vez mais explícito ao seu poder militar. São quase só ameaças,  anúncio de novos armamentos, aumento expressivo do orçamento militar de 2023, cheque  em branco para a guerra da Ucrânia e reativação de velhas alianças, como no caso da  inciativa do AUKUS, com Inglaterra e Austrália, membros incondicionais da velha “família  colonial de língua inglesa”. Tal obsessão militarista pode ser a causa de os Estados Unidos  não terem conseguido antecipar ou prever o que foi com certeza sua maior derrota  diplomática desde a “crise dos reféns” da embaixada norte-americana de Teerã, em 1979:  o anúncio, na cidade de Pequim, no dia 15 de março de 2023, do acordo mediado pela  China de pacificação das relações entre o Irã e a Arábia Saudita, e do restabelecimento de  relações diplomáticas entre os dois países em dois meses mais, junto com seu  compromisso mútuo de defesa do princípio da soberania nacional.

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Na década de 1950, os Estados Unidos construíram seu esquema de poder no  Oriente Médio apoiado no Irã, na Arábia Saudita e em Israel. Em 1979, os norte-americanos  perderam o Irã, e agora estão perdendo a Arábia Saudita. Ou seja, o acordo negociado  pela China afasta os Estados Unidos do Oriente Médio e anuncia a chegada da influência  chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo contrário, através de uma diplomacia da paz, que  se soma ao Plano de Paz de 12 pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e  da Ucrânia, e também aos governos dos demais países envolvidos diretamente nessa  guerra, a começar pelos Estados Unidos. Iniciativas diplomáticas da China na Ásia, Europa,  África e América Latina, que anteciparam o anúncio pelo presidente chinês, Xi Jinping, de  sua Global Civilization Initiative, o mais ambicioso projeto de pacificação universal jamais  apresentado aos povos do mundo por uma grande potência e uma grande civilização.

Na década de 1950, os Estados Unidos construíram seu esquema de poder no  Oriente Médio apoiado no Irã, na Arábia Saudita e em Israel. Em 1979, os norte-americanos  perderam o Irã, e agora estão perdendo a Arábia Saudita. Ou seja, o acordo negociado  pela China afasta os Estados Unidos do Oriente Médio e anuncia a chegada da influência  chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo contrário, através de uma diplomacia da paz, que  se soma ao Plano de Paz de 12 pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e  da Ucrânia, e também aos governos dos demais países envolvidos diretamente nessa  guerra, a começar pelos Estados Unidos. Iniciativas diplomáticas da China na Ásia, Europa,  África e América Latina, que anteciparam o anúncio pelo presidente chinês, Xi Jinping, de  sua Global Civilization Initiative, o mais ambicioso projeto de pacificação universal jamais  apresentado aos povos do mundo por uma grande potência e uma grande civilização.

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