Esquinas
O sambista da Barra Funda dobrou a esquina errada e aí não tinha mais volta
Sabedoria de rua meu pai esbanjava. Numa esquina de Vila Isabel, declarou com autoridade que esquinado não era quem ficava parado no encontro de duas ruas, tal qual pipoqueiro, poste ou banca de jornal.
- Esquinado é quem abusa da bebida.
Lembro como se fosse agora de manhã, ele anunciava com eloquência, enquanto dobrava à esquerda, a deixar a Torres Homem e entrar na Silva Pinto, com sua Vemaguetti cor de café com leite.
Então (pra mim, ainda é agora), meu pai abaixa o volume do programa Patrulha da Cidade e segue na palestra, a contornar outra esquina, esta mais próxima ao morro dos Macacos:
- Aí, a gente enfia um verbo e inventa, filho. Por exemplo, em vez de dizer que fulano tá de pileque, a gente diz que ele vive se esquinando por aí, ou que esquinou-se no primeiro boteco.
Vieram muitas outras caronas com meu professor maior:
- Só te conto o segredo, se você me garantir que é um túmulo. O rapaz é um pão doce quer dizer que ele é um galã e não que está na vitrine da padaria. Aquele governador é cara de pau não significa que as bochechas dele são de peroba, dá para entender?
O ano é o de 1969 e a gente se despede com a barba mal feita espetando minha pele lisa de menino.
Antes de 1970 se apresentar ensaio contar pelo menos a palestra de “O Esquinado” durante a aula de Português. Faço repetidos testes na frente do espelho e logo descubro que o que me falta é coragem.
Da professora Jocely e suas lentes grossas, a esconder os olhos verdes, não tenho medo, o que me intimida, assombra mesmo, é a reação dos colegas de escola.
Debochariam ou elogiariam? Vaias de esculacho ou silêncio de admiração?
Adiei, adiei de novo e então decidi: contarei no dia 30 de fevereiro.
Como em tantas esquinas e bifurcações que nos convidam a uma virada, recusei para me arrepender depois. Quem nunca?
Já é outro o século e já é outra a Vila. A esquina larga se estreita com a banca de dona Miriam, que vende meias e prendedores de cabelo, e a invasão das mesas e cadeiras para esquinados e esquinadas.

É por ali que caminho e, bem perto da dobra, quase sou atropelado. Brecamos juntos no que restou de calçada. Eu e Ubirajara, o Bira da Barra Funda. Deixamos de bater de frente para nos apertarmos num abraço de carinho e saudade.
O Bira sambista, que quando não canta, dedilha o cavaquinho ou bate o pandeiro, tem pressa. Engole vírgulas.
- Vou até a 25 de março comprar um brinco conheci a Rosana outro dia e ela me convidou para o aniversário dela que é hoje e vai ser naquele bar da esquina daquela rua...esqueci o nome.
- O brinco é para impressionar?
Bira respira fundo.
- Não, é para enlouquecer. Vi em uma série: o personagem aposta na surpresa para conquistar a moça. Na festa de aniversário dela, ele dá um colar de presente, diz que pensou nela ao escolher, mas que não pode demorar porque tem outra festa. Dá-lhe um beijo no rosto, cumprimenta mais duas ou três convidadas e vai embora sozinho. A moça fica, ao mesmo tempo, feliz com o presente e frustrada com a ausência. Ele planeja um novo encontro para mais alguns dias. Tem certeza que ela estará encantada pelo homem surpreendente e misterioso.
- Será que funciona? Pergunto, fascinado pela ousadia do Bira.
- Não tem erro. Vou fazer igual.
Nos despedimos, cada um pro seu lado da esquina.
No dia seguinte, telefono com a curiosidade de um noveleiro.
- Deu certo, Bira?
- Tudo errado. Como diria teu pai, me esquinei num boteco e quando cheguei à festa a Rosana estava indo embora, porque o bar tinha horário. Ainda vi o vestido rosa esvoaçante, a sacola de presentes e ela entrando no carro de aplicativo.
- Sozinha?
- Tu parece repórter, quer saber de tudo.
- Não enrola, Bira.
- O que você acha?
- Perguntei primeiro.
- Acompanhada.
- E agora?
- Vacilei e perdi. Passa lá no samba hoje.
Sento sozinho e a surpresa me paralisa a ponto de nem ouvir o canto de Bira: uma delicada argola prateada brilha em sua orelha direita, agora furada e enfeitada com o novo brinco e sua pedra esverdeada.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

