Etienne, Pedro Bala e outros heróis
Esquecemos que há uma história baseada em outros pontos de vista, perspectivas que merecem ser conhecidas e sobre as quais devemos sempre refletir
Estamos tão acostumados a aceitar a versão oficial da história, sempre contada pelos vencedores, que esquecemos que há uma história baseada em outros pontos de vista, perspectivas que merecem ser conhecidas e sobre as quais devemos sempre refletir.
No livro “La otra historia de los Estados Unidos”, Howard Zinn, professor da Universidade de Boston, nos oferece uma perspectiva inesperada e necessária dos fatos e acontecimentos que formam parte da história daquele país.
Com humor e delicadeza o professor Zinn resgata as vozes de afroamericanos, mulheres, indígenas, operários pobres e imigrantes de todas as nacionalidades, ou seja, outras visões sobre fatos fundamentais que merecem ser ouvidas, a visão das pessoas comuns como nós, sem romantizar tantos atos de barbárie que a (des)humanidade de forma revisionista conta como se heroicos fossem.
Quem me apresentou o professor Zinn foi o personagem de Matt Damon no filme “Gênio Indomável”, de Gus Van Sant, vencedor do Globo de Ouro e do Oscar de melhor roteiro.
Além da obra de Zinn, a literatura também dá voz às pessoas comuns, aos marginalizados e aos perdedores, por isso há obras que, mesmo após séculos, são atuais e necessárias.
Todas as manhãs ouço os comentários sobre geopolítica do professor Lejeune Mirhan, um dia desses ele fez referência ao livro Germinal, de Émile Zola - livro que, segundo ele, o influenciou muito -, lembrei das aulas de literatura no colégio Victor Meirelles, ou Escola Estadual de Segundo Grau Vitor Meireles, ali na rua Espírito Santo, no Bairro do São Bernardo, em Campinas,
A dona Eníde, nossa professora de literatura, nos apresentou obras fundamentais.
Confesso que não li todos os livros por ela indicados à época, creio que não tinha cognição para representar mentalmente informações contidas nas obras, elas não eram compatíveis com o meu conhecimento naquele momento, ademais, precisávamos administrar as alterações hormonais que ocorrem durante a puberdade, contudo, ao longo da vida li a maioria deles, alguns revisito ainda hoje, pois, tornaram-se referências necessárias e não me deixam esquecer de onde eu vim e qual a visão de mundo que pretendo legar aos meus filhos.
Já escrevi que ‘Os Miseráveis’, de Victor Hugo, é uma dessas obras, outras são ‘Vinhas da Ira’, de John Steinbeck e ‘Capitães de areia’, de Jorge Amado, mas fazia tempo que eu não pensava no ‘Germinal’.
O ‘Germinal’, provavelmente, é o mais famoso livro de Zola, que passou dois meses trabalhando como mineiro na extração de carvão; viveu com os mineiros, comeu e bebeu nas mesmas tavernas para se familiarizar. Sentiu na carne o trabalho sacrificado que era necessário para escavar o carvão, além da promiscuidade das moradias, o baixo salário e a fome; Zola acompanhou de perto uma grande greve da categoria.
O livro conta a história de Etienne, um jovem que vagava na miséria pelo interior francês, até encontrar ocupação na mina de Montsou, uma das mais importantes do país. Aos poucos, o personagem adquire consciência da exploração, se aproxima das ideias socialistas e se transforma em líder grevista, comandando uma revolta de mineiros que enfrentaria as forças de segurança do Estado.
Creio que vale a pena comentar também as outras obras citadas.
Capitães de Areia, de Jorge Amado, é um livro emblemático; o livro conta as peripécias de adolescentes marginalizados em Salvador, organizados em um grupo denominado de “Capitães de Areia”; sob a liderança de Pedro Bala, filho de um grevista assassinado, vários personagens das camadas populares se integram à cena, enquanto o personagem central, cada vez mais fascinado pelas histórias do pai sindicalista, transita à militância revolucionária, substituindo a marginalidade pela luta social. Magnífica essa imagem.
Em ‘As Vinhas da Ira’, de John Steinbeck, vivemos o drama dos Joads, uma família de meeiros pobres, durante a Grande Depressão, entre 1929 e 1934, expulsos da propriedade que ocupavam no Oklahoma. Junto com muitas outras famílias, os Joads migrariam para a Califórnia, em um relato épico que vai desnudando o chamado “sonho americano” e demonstrando o pesadelo no qual o capitalismo, no pré-guerra, havia transformado a vida das classes trabalhadoras dos Estados Unidos.
Minha avó Maura me apresentou ‘Os Miseráveis’, de Victor Hugo. A história é sobre um condenado, Jean Valjean; é um incrível romance histórico, uma alegoria do permanente conflito entre o Estado repressor, alinhado às castas superiores, e os pobres da cidade e do campo.
Atualmente, tempos de idiotia vicejante, a Dona Eníde seria considerada uma professora “doutrinadora”, quando na verdade ela nos ofereceu acesso à literatura e à possibilidade de desenvolvermos o que a sociologia chama de ‘consciência de classe’, conceito desenvolvido no âmbito da sociologia e um modo necessário de nos enxergarmos dentro de um sistema, no nosso caso, dentro do capitalismo.
Ao ler os livros que citei acima, descobri o que é “pertencimento” (e nem usávamos essa palavra); ler Émile Zola, John Steinbeck, Jorge Amado e Vitor Hugo me ajudou a descobrir o meu lugar no mundo; eles me mostraram que faço parte de algo que é maior e mais importante; a leitura desses e de outros livros me ofereceram a percepção de fazer parte de uma comunidade, de uma família, de um grupo, de uma nação.
O impacto na minha vida foi definitivo, pois, valores e princípios como cidadania, dignidade, cultura, e respeito às diferenças, passaram a fazer parte da minha vida; percebi que somos sujeitos de direitos, que temos direito ao acesso aos bens materiais e culturais de uma sociedade, à saúde, moradia, educação, proteção jurídica, entre outros.
O sentimento de pertencimento me colocou em movimento e me transformou no que sou: um militante de esquerda.
Essas são as reflexões.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




