Filé à Cubana e Punitivismo à Brasileira
Enquanto não reavaliarmos os pilares que sustentam a atuação jurídica, estamos condenados a reproduzir a formação de ótimos profissionais, mas péssimos juristas
A sociedade brasileira é essencialmente punitivista1. E, não diferente do que acontece com outros conceitos, quando aplicado em nosso território, este foi adaptado à “brasileira”. O mesmo fenômeno ocorreu com o Habeas Corpus2, com a adoção no direito civil3, com as festas4 e com o filé à cubana.
O filé à cubana, assim como outros pratos (o filé à parmegiana, por exemplo) são invenções brasileiras que, porventura, carregam algum adjetivo que leva a entender serem importados e requintados. O filé à cubana nada mais é do que uma gororoba com bife à milanesa, arroz, banana também à milanesa, batata palha, uma rodela de abacaxi e umas folhas de alface pra enfeitar. Não faz muito sentido em termos gastronômicos e, muito menos, culturais (apesar do abacaxi). Ainda sim, acreditamos ser vendido em qualquer esquina de La Habana, somos apegados, e insistimos no pedido.
Da mesma forma, temos o ideal punitivista brasileiro. Apesar de nossa história e formação cultural ser bastante diversa e ter nos fornecido diversas oportunidades para aprender e inovar, principalmente, por sermos um país imenso, relativamente novo e extremamente desigual. Ao invés de formularmos um direito penal pensando na redução de desigualdades e na construção de um país verdadeiramente mais justo, optamos por adotar uma legislação penal antiquada – a exemplo do que acontece com a Lei de Drogas. Tudo a título de “proteção do cidadão de bem”.
A expressão máxima do punitivismo brasileiro é ilustrado de forma caricata nas frases “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos”. Ambas muito utilizadas como principais slogans políticos que ajudaram Jair Bolsonaro a sentar na cadeira da presidência. Mérito aos marqueteiros, mas a estratégia não é novidade.
No pós-guerra, o Direito Penal tinha uma lógica: prever um fato, tipificá-lo e fazer a subsunção entre o fato e o tipo, para verificar se houve crime ou não. Porém, com o fim do fordismo, essa lógica mudou. O Direito Penal passa a ser usado para promover ajustes em prol da gestão do capital.
Portanto, percebe-se a clara seletividade natural do direito penal, que separa os homens de acordo com aquilo que lhes é mais caro: a liberdade e a independência. Contudo, em terras tupiniquins, parece que a seletividade penal que se volta quase que exclusivamente contra a juventude negra e periférica, no contexto da política de Brasília, toma contornos mais “curiosos”, por assim dizer. Aquele que é tido como o inimigo, merece a prisão. Contudo, fechamos os olhos para os nossos presídios e o que buscamos com o encarceramento. No caso da política, geralmente é a vingança, o sofrimento do outro e a desmoralização pública.
Dessa forma, como expôs o Prof. Allyson Leandro Mascaro no 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido em São Paulo pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim): “Hoje, não são apenas os pobres que são atingidos pelo Direito Penal. Até um presidente pode ser alvo dele. Mas isso não quer dizer que o Direito Penal seja funcional. Pelo contrário: o Direito Penal é cada vez mais disfuncional”.
O maior dano causado por esse transtorno é uma incapacidade do direito penal de controlar devidamente a sociedade, o resultado é um episódio como o 8 de janeiro (que discutiremos mais adiante).
Não é por acaso que no Brasil, país com um histórico colonialista, escravagista e miliciano, temos produzido uma legislação penal extremamente complicada. Provável que a melhor simplificação desse problema, pode ser realizada a partir da crítica ao direito burguês, exposta na obra Teoria Geral do Direito e Marxismo" (1924) de Evguéni Pachukanis, na qual o direito, enquanto ferramenta de dominação classista, serve para os objetivos daquele que o produz, qual seja, a manutenção da estrutura de poder.
Com a prisão do Presidente Lula e as posteriores anulações das condenações do Presidente na Lava Jato; com a Operação Spoofing, que revelou as conversas obscuras da força-tarefa desta que foi a maior operação policial da história do país; Com a eleição, queda e revelação de Bolsonaro, que agora, posto do outro lado da tela, assiste grande parte da população (e do meio político) pedir sua prisão. Todos estes fatos brevemente mencionados, combinado com tantos outros que surgiram no meio do caminho, contribuíram muito para uma confusão da massa social sobre o que é justiça, e como a Justiça Criminal deve verdadeiramente agir, o que não por meio de Sérgios e “Xandões”.
É justamente a partir dessa conjuntura que surge a reflexão sobre o punitivismo à brasileira.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o direito brasileiro pós-constituinte de 1988 carrega, em si, além de sua característica garantista e cidadã, uma defesa das estruturas democráticas, recém reconstruídas e, novamente, institucionalizadas, após a ditadura militar.
Por essa razão, e pela correta interpretação constitucional que apresentou, devemos reconhecer a atuação do Supremo Tribunal e, em especial, do Ministro Alexandre de Moraes nas eleições de 2022 e após a tentativa golpista de 8 de janeiro.
Da mesma forma, deve ser bem-vinda a iniciativa, por parte do Governo Federal, de incluir no novo PAS (Programa de Ação na Segurança) o projeto de lei que prevê aumento na pena de crimes contra o Estado Democrático de Direito. Não há como se esperar atitude diversa de um governo democrático ameaçado de ser destituído na semana de sua posse.
Contudo, a análise acerca do punitivismo “à brasileira” que aqui se pretende fazer é muito mais densa, muito mais uma reflexão social-filosófica do que, propriamente, jurídica. Assim também não o é do ponto de vista do direito penal. É um ensaio, inspirado na criminologia crítica, que se propõe a investigar – ou melhor, a questionar – o fetichismo brasileiro com a ideia do cárcere; de se ver livre e ver presos os diferentes. De início, cumpre esclarecer que enquanto ensaio, não se pretende aqui exaurir o tema discutido, mas inspirar um debate sobre.
Há pouco mais de seis anos atrás, em julho de 2017, quando o Presidente Lula foi condenado no caso do Triplex, a ala mais conservadora da sociedade brasileira bradava por uma renovação política, uma verdadeira limpeza contra tudo aquilo que julgavam “corrupto”5, imoral, ou diferente.
Para alguns (por óbvio, não todos), o Presidente Lula representava tudo aquilo que existe de ruim entre a terra e os céus. Da mesma forma, para outros, Bolsonaro representa o mal (ou um mal) que lhe torna “indefensável”; indigno de direitos e empatia humana mínima, sujeito até aos males da violência que tanto lutamos para combater.
Assim como os advogados judeus que nos anos 70 debateram o direito à expressão do partido nazista americano, o que ajudou a consolidar a Primeira Emenda da Constituição americana, aqui, se pretende estressar/instigar as razões pelas quais nós, enquanto brasileiros e, em especial, àqueles leitores que se interessam por direito e política, temos a ideia quadrada de que para se solucionar um problema social o melhor caminho sempre é a prisão?
O grito que soava em 2017, ecoava há tempos. Era fruto de uma série de acontecimentos histórico-políticos, que teve seu auge em julho de 2013, quando grande parte da população, mobilizada como não se via há tempos, foi às ruas em nome da batalha contra a corrupção e contra a imoralidade e, por malícia ou ingenuidade, causou o golpe de 2016.
Os movimentos da direita foram muito mais perspicazes em analisar essa conjuntura e sentimentalizar6 a política nacional a partir disso. Nesse contexto, o canalha do Sérgio Moro virou senador da república com pompas de herói nacional e outro sujeito, miliciano, com ares do mais clássico e pervertido bicheiro carioca, virou presidente da república.
Todo mundo sabe que Bolsonaro rouba. Roubava. Já roubou. Ou, no mínimo, suspeitava disso. Claro, com exceção dos bolsonaristas mais fervorosos. Não era nenhuma novidade na política nacional7. Bolsonaro desde muito cedo era relacionado ao crime organizado e colecionava processos na justiça.
Talvez agora, quase completo o primeiro ano do terceiro governo Lula, tenhamos alguma esperança de que Bolsonaro seja condenado, ao menos, por um dos crimes que cometeu em vida. Senão for por aqueles contra a democracia, que seja pelas joias, né?
Eu mesmo, enquanto militante, por vezes me vejo nessa situação como a descrita no parágrafo anterior: de desprezar tanto alguém que a prisão desse sujeito parece ser o mais correto. Ou será que aqui confundimos a ideia da instituição “prisão” com, muito além da ideia de punição, com a ideia de causar sofrimento àquele que me feriu. Talvez faça sentido considerando a realidade do sistema carcerário brasileiro.
É justamente essência punitivista da sociedade brasileira que além de influenciar gerações, desde sempre, utilizou-se da justiça e da persecução criminal para perseguir adversários políticos e desmoralizá-los publicamente, manchando sua honra e almejando minar sua carreira política.
Da mesma forma que a direita pedia a prisão de Lula – e a Lava Jato não foi a primeira tentativa – hoje, assistimos alas da esquerda clamarem não somente pela condenação (essencial para a narrativa) mas pela prisão – ou coisa pior – de Bolsonaro e seus Ministros; pela condenação daqueles que estavam em Brasília no 8 de janeiro, em grande parte idosos – em todos os casos, até por bolsonaristas, senis – que não necessariamente devem ir pra cadeia.
Não misturemos as coisas. Bolsonaro deve sim ser condenado, mas, não necessariamente, a sentença que o condenará será proferida em um processo devidamente legal, cabe a nós, criminalistas e operadores do direito, garantir com que seja.
Pior é o caso dos bolsonaristas do 8 de janeiro. Temos diversas situações – quando analisadas caso a caso – que comportam soluções muito distintas à privação da liberdade, o bem mais valioso em um Estado dito democrático e de Direito.
Bolsonaro e seus ministros são pessoas poderosas, bem aparadas, juridicamente assessoradas, ricas e creem ter apoio popular. Realidade muito diferente da imensa maioria daquelas quase duas mil pessoas presa naquele fatídico dia.
É por isso que devemos olhar sempre com cuidado às falas, pessoas e projetos políticos essencialmente punitivistas. Na maioria das vezes, analisamos essas questões passionalmente e esquecemos daqueles milhares que potencialmente podem ser atingidos e terem suas vidas marcadas por essa razão.
Falta muito tête-à-tête, olho no olho e humanidade no sistema de justiça penal brasileiro.
Vejamos. Quem conhece uma prisão, especialmente as brasileiras, sabe que ali não é lugar para ser humano algum. Não por acaso desejamos isso aos nossos piores inimigos.
Mas, se a ideia é fortalecermos nossas instituições por meio da Justiça e, eventualmente, por meio do direito penal, da condenação de alguém, o caminho há de ser mais razoável.
Não nos deixemos iludir. A tormenta passou, mas a luta é contínua, mesmo em um governo progressista, no campo da justiça criminal, temos muitas pautas ainda a avançar, muitas delas tão impopulares quanto essenciais.
Realmente são muitos atores envolvidos nesse processo e que contribuem para a manutenção status quo. A título de exemplo, vejamos o que houve com a nomeação do Zanin e os votos do agora Ministro.
O mesmo jurista que desenvolveu a tese do Lawfare (uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo) no Brasil, é aquele que encarna o carrasco punitivista e condena um sujeito acusado de furtar R$ 100,00 em gasolina8.
A reflexão que busco trazer a partir desse esboço pode ser resumida, em parte, pela fala do Ministro Flávio Dino de que “O nosso governo liderado pelo presidente Lula não é de esquerda, é um governo que expressa maioria democrática. Cristiano Zanin se insere nesse conceito de maioria democrática? Sim, claro”. E o Ministro não poderia estar mais correto.
E é justamente por essa razão que os operadores do direito, principalmente, os estudantes, não podemos nos permitir distrair: o Brasil mais justo e solidário que buscamos ainda é muito distante. Enquanto não reavaliarmos os pilares que sustentam a atuação jurídica, estamos condenados a reproduzir esse modelo de formação de ótimos profissionais, mas péssimos juristas.
Ao menos, em meio a trancos e barrancos, temos avançado.
1 O punitivismo penal pode ser descrito como o uso do direito criminal para causar sofrimento exacerbado naqueles que infringem a lei ou as regras sociais (Silva, R. S., & Cunha, P. G. M. (2020). A Quem Atinge o Punitivismo Penal? Revista do Pet Economia Ufes, 1. Disponível em: [https://periodicos.ufes.br/peteconomia/article/download/31724/21182/92712#:~:text=O%20punitivismo%20penal%20pode%20ser,fim%20de%20punir%20o%20infrator]. Aceso em 04/09/2023).
2 RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, v. 3, p. 33
3 CALLEGARO, Sandoval. As nuances da adoção à brasileira. Conjur, 29 de maio de 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mai-29/sandoval-callegaro-nuances-adocao-brasileira>. Acesso em 04/09/2023.
4 AMARAL, Cássia de Mello Peixoto Rita de. Festa à brasileira: significados do festejar no país que 'não é sério'. Local de publicação: Editora, ano de publicação. Disponível em: <https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/festa-%C3%A0-brasileira-significados-do-festejar-no-pa%C3%ADs-que-n%C3%A3o-%C3%A9-s%C3%A9rio>. Acesso em 04/09/2023.
5 Aliás, sobre essa confusão terminológica que também envolve o tema da corrupção ver: ALBUQUERQUE DE BARROS, Ana Carolina; PEREIRA LIMA, André e KUPERMANN, Miguel. Torre de Babel da Política. Revista CULT, [https://revistacult.uol.com.br/home/torre-de-babel-da-politica/]. Acesso em 04/09/2023.
6 Recomenda-se ler: Torralba, Ángela M., Guevara, J. A., Hernández, A. M. C., & Robles-Morales, J. M. (2023). Harmonia afetiva entre políticos e usuários da rede: a greve nacional na Colômbia, 2021. Tempo Social, 35(1), 163-190. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2023.203988
7 Ver: DAL PIVA, Juliana. O negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro. Zahar, 2022.
8 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512986&ori=1. Acesso em 04/09/2023.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

