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Felippe Mendonça

Advogado e professor de Direito; Doutor e Mestre pela USP; especialista em Direito Constitucional; membro da Comissão de Ética do IBGC; membro da Comissão de Compliance do IASP; Divulgador científico de humanas pelo Canal Sem Gravata

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“Fuzilar a Petralhada” é fala tosca e pode ser considerada discurso de ódio, sim

A Folha de S. Paulo publicou entrevista com professora Clarissa Gross que defende “fuzilar a petralhada" como liberdade de expressão

Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução)

Por Felippe Mendonça

A Folha de São Paulo publicou em 25 de julho, entrevista com a professora da FGV e Doutora em filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, Clarissa Piterman Gross, com a manchete “`Fuzilar a Petralhada’ é fala tosca, mas não discurso de ódio, diz professora”.

A Professora conquistou seu título de doutorado com a tese “Pode dizer ou não? Discurso de ódio, liberdade de expressão e democracia liberal igualitária” a qual, desde já, manifesto minha vontade de estudá-la, pelo pouco acesso que tive, disponível na biblioteca digital da universidade.

A entrevista com a Professora é valorosa e traz conceitos importantes, embora eu anote aqui a minha discordância respeitosa e tente apresentar meus motivos e embasamentos.

Antes de abordar os principais pontos da entrevista, vou correr o risco de tentar simplificar o que está exposto no abstract de sua tese, já com a devida escusa aos leitores, e principalmente à autora, pois coisas complexas nunca deveriam ser simplificadas.

A tese, conforme narra a própria autora, corrobora com o argumento de que os discursos de ódio não podem ser proibidos em razão de seu conteúdo. Ancorada em Ronald Dworkin, dentre outros, sustenta que as decisões tomadas pela vontade da maioria [por exemplo, as leis aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo] só podem ser legitimamente impostas às minorias pelo Estado se a todos os indivíduos for garantida a liberdade de se expressar sobre temas éticos, morais, políticos e estéticos, tanto no exercício da conformação de sua própria identidade, quanto na contribuição para a construção dos valores da sociedade em que convive. Cabe meu alerta aos leitores de que a Professora não está defendendo uma inexistência de discurso de ódio, o que a tese propõe é uma análise da amplitude da liberdade de expressão em contextos diversos, principalmente quando feito dentro do ambiente democrático de debate político. Voltarei ao assunto mais tarde.

Indo para a entrevista, merece destaque a fala correta de que a legislação brasileira não especifica “discurso de ódio” propriamente dito, ou seja, não tem nenhuma lei que define exatamente qual o conteúdo, contexto, ou intenção que caracterizaria uma fala como discurso de ódio. O que temos são normas de direito civil e penal que limitam a liberdade de expressão e, em algumas circunstâncias, tratamos a fala como tal, em que a Professora aponta duas hipóteses: (1) falas que ofendem “a honra coletiva de grupos, própria do direito civil e por vezes reconhecida pelo Judiciário, que constitui respeito à reputação e à autoestima de grupos, em contraste com a honra de indivíduos.” e (2) no direito penal, o Artigo 20 da Lei do Racismo, que tipifica como crime "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".

Em seguida, a Professora qualifica o que consideramos como discurso de ódio por três características: (1) ser dirigido a grupos identitários e não a indivíduos, com a ressalva de que esses grupos protegidos costumam ser os considerados vulneráveis; (2) possuir conteúdo discriminatório, em que se nega que as pessoas de determinado grupo sejam seres humanos de igual valor e detentoras dos mesmos direitos; e (3) ser proferido publicamente e não em conversas privadas.

A Professora ressalta a importância do contexto da fala, pois isoladas podem aparentar discurso de ódio, sendo que, analisada dentro do contexto, podem não configurar ilícito algum – e por “contexto” aqui se compreende não só a análise integral de um texto mas o seu ambiente como um todo, ou seja, sua motivação, a quem se direciona, a que tempo foi dita, dentre outros elementos que podem descaracterizar ou caracterizar a ilicitude. Até aqui, concordo com tudo. É na sequência deste ponto que começo a divergir e já alerto que não existe certo ou errado nesse debate, pois estamos longe de chegar em qualquer consenso científico.

Questionada sobre a fala do Presidente Jair Bolsonaro quando em campanha eleitoral de 2018 disse “vamos fuzilar a petralhada”, a Professora responde que, fora do contexto, aparenta ser discurso de ódio mas, se analisado o contexto, por ser um discurso eleitoral, pode ser interpretado como uma aposta na vitória do então candidato sobre o Partido dos Trabalhadores, a qual qualifica como grosseira, tosca e ignorante, mas que considera haver razões para não considera-la literal – e aqui não posso deixar de lembrar que Bolsonaro utilizava uma muleta para simular uma metralhadora –, portanto, em sua análise, não configura discurso de ódio e, consequentemente, também não configura incitação ao crime

Pouco antes, a Professora deixa claro que considera que se a fala tem a intenção de negar direitos a pessoas pertencentes a um grupo identificado pelas suas convicções políticas, pode configurar como discurso de ódio, sim, embora a identidade política não seja uma categoria que tradicionalmente os direitos de não-discriminação se preocupem – e novamente concordo com ela. 

Exatamente por esse ponto em que concordamos que nasce minha discordância, pois o contexto em questão, ainda que político-eleitoral, faz precisamente o que transcrito acima. Em sua fala, devidamente contextualizada, Bolsonaro tratava petistas como se fossem moralmente inferiores a ele e aos seus seguidores, detentores de uma superioridade ética e moral que supostamente lhes desiguala do grupo ofendido, ao qual nega o direito à vida, incentivando fanáticos a pegar em armas e exterminar os supostos “inimigos”.

Embora exista um princípio da interpretação que determina sempre buscar a leitura mais empática possível, que no direito penal se traduz em a mais benéfica ao réu, há limites na empatia por uma fala que, além de tosca, grotesca e ignorante, inferioriza um grupo, lhe nega o direito à vida e estimula seguidores fanáticos a perseguirem pessoas por considerá-las inferiores.

A Professora deixa claro na entrevista não ser simpática ao Presidente e que essa fala, em outros contextos, pode sim configurar discurso de ódio e incitação a crime, entretanto, voltando à tese de doutorado, sua análise parte de um posicionamento absolutamente válido – diga-se de passagem –, do qual hoje discordo, mas que um dia, em um passado bastante recente, já concordei, de que a liberdade de expressão, dentro do ambiente de debate político (contexto), deve ser quase absoluta, permitindo todo e qualquer discurso, independente de sua fonte ou conteúdo.

Em outras palavras, o contexto desta fala, por ser eleitoral, encontra-se exatamente no principal ambiente do debate político, em que a sociedade está mais inclusa e que os representantes do povo manifestam seus pensamentos com mais clareza, permitindo aos eleitores escolherem de acordo com suas preferências.

Nesse sentido, deixar os idiotas falarem suas idiotices parece ser melhor do que mantê-los calados, recebendo votos de pessoas que nem imaginavam o quão grotesco são. Fui adepto por muito tempo desse pensamento, mas mudei de opinião diante do cenário atual da política nacional e internacional, com nova escalada dos ideais nazi/fascistas impregnando e matando as democracias.

Escrevi minha dissertação de mestrado (2012) e minha tese de doutorado (2019) em partes ancoradas nesse posicionamento, suportando meus argumentos também em Ronald Dworkin, mas principalmente em Robert Dahl.

Dahl dizia que nenhum país chegou a ser uma democracia, no máximo, alguns poucos, chegaram a ser poliarquias (governo de muitos), quando bem desenvolvidas a liberdade de oposição ao governo e os espaços de participação dos indivíduos na atividade política do Estado. Para chegar a ser uma democracia, Dahl apresenta três condições gerais que delas decorrem oito condições mais específicas. Somente desenvolvendo bem essas oito condições seria possível desenvolver bem as três condições gerais e assim chegar a ser uma democracia.

As três condições gerais de Robert Dalh para a democracia são: (1) que os cidadãos possam formular livremente suas preferências – ou seja, capacitados a pensar independente de manipulações; (2) que possam expressar suas preferências ainda que individualmente – se não se identificarem com nenhum grupo, precisam ter espaço no debate político ainda que sozinhos; e, por fim e mais importante, (3) que suas preferências sejam respeitadas no debate político, independente da fonte ou do conteúdo – e é nesse ponto que sustentei muitos dos meus pensamentos, pois significa permitir falas problemáticas, oriundas de grupos extremistas, racistas, nazistas, homofóbicos, etc.

Minha dissertação de mestrado foi sobre o conceito jurídico de cidadania e ainda mantenho minhas conclusões, entretanto, com um escopo diferente. Em síntese, após consulta de inúmeros autores que apontavam a necessidade de evoluir o conceito jurídico de cidadania, que antes era tratado apenas como direitos políticos ativos e passivos, concluí que o conceito jurídico atual de cidadania é o princípio da máxima inclusão, ou seja, que o Estado deve ser inclusivo, nunca excludente, muito menos exclusivo. E essa inclusão, quer seja, política, social, cultural ou econômica, deve ser na maior medida possível – medida essa que, hoje, vejo um pouco menos abrangente do que via em 2012 pois, naquele tempo, eu não imaginava que poderíamos retroceder tanto em termos civilizatório ao permitir aos idiotas que falem livremente suas idiotices.

Já no doutorado, em 2016, ainda na qualificação – etapa prévia em que somos submetidos a uma banca que avalia o desenvolvimento da pesquisa e orienta para os passos seguintes –, eu havia escrito um longo trecho menosprezando a possibilidade dos grupos extremistas representarem um risco à democracia e, sendo meu tema o controle de constitucionalidade preventivo jurídico das normas, sustentava que caberia ao sistema de controle impedir normas populistas da extrema direita de conteúdo nazi/fascista, ainda durante o processo legislativo, mas que deveríamos permitir que fossem apresentadas no debate político exatamente para que, desde o início, antes de receberem amplo apoio popular, já pudessem ser depuradas para que a sociedade compreendesse a sua impossibilidade constitucional. Para alguma coisa a eleição de Donald Trump me serviu: deletei esse trecho inteiro sem dó nem piedade – lixo! Ao final, em 2019, com a pesquisa madura, concluí que há a necessidade de incluirmos no nosso sistema hipóteses de controle preventivo jurídico de constitucionalidade das normas – se alguém tivesse me escutado, a PEC Kamikaze nem nascia –, mais especificamente para correções de questões formais (processo e competência) e, em raras hipóteses, impedimentos de continuidade do processo legislativo por questões materiais (conteúdo) – ainda concordo comigo mesmo, pelo menos por enquanto.

Hoje, o que vejo é um movimento científico-acadêmico no sentido oposto ao que antes motivou inúmeros pensadores a proporem essa liberdade de expressão quase absoluta quando dentro do ambiente de debate político (contexto). Alguns poucos anos atrás, a preocupação da sociedade científica-acadêmica de humanas era o crescimento dos discursos de ódio pelos esgotos da sociedade, longe do ambiente político, que lhes rejeitava e causava a impressão de que seus defensores estavam tão certos que ninguém tinha coragem de debater com eles, ou tentavam lhes calar para impedir que a população pudesse ver o quão certo eles estavam – por aqui um astrólogo guru que se apresentava como filósofo autodidata fez muito sucesso com esse discurso dos excluídos do debate. A tendência, então, replicada em inúmeros trabalhos acadêmicos, era permitir a entrada dessas pessoas excluídas no debate político, livres para expor seus discursos problemáticos, para dentro deste contexto político, combatê-los de forma mais eficiente. 

Esse pensamento motivou, por exemplo, inúmeras defesas de que o nefasto Mein Kampf, de Adolf Hitler, deveria ser liberado para publicações com comentários de acadêmicos que pudessem descontruir o discurso e apontar seus erros. Motivou, também, a Corte Constitucional da Alemanha a liberar um partido extremista de propostas próximas ou idênticas às do antigo partido Nationalsozialist e, posteriormente, garantir que seus representantes poderiam, sim, discursar no parlamento, independente do conteúdo.

Ocorre que, em pouco tempo – talvez exatamente por termos permitido demais os idiotas de falarem suas idiotices, ou, ao contrário, por ter sido tarde demais para tentar incluir aqueles que sempre se sentiram excluídos do debate –, a escalada dos discursos nazi/fascistas mundo afora fez o barco virar. Agora escuta-se mais pela academia falar do paradoxo da tolerância de Karl Popper, do que das condições de Dahl – não que tenham perdido sua importância. O paradoxo da tolerância, aos que estavam em marte nos últimos anos, é a aparente contradição do limite da tolerância dos democratas, que devem tolerar qualquer ideia, por mais ridícula que lhes pareça, mas não devem tolerar os intolerantes, pois, se deixá-los prosseguir com suas falas que inferiorizam grupos vulneráveis e limitam seus direitos, cedo ou tarde esses intolerantes matam a própria democracia.

Isso ainda está longe de ser um consenso científico – inclusive a Professora expõe bem esse debate ao final da entrevista –, por isso que enfatizo aqui que seu posicionamento é absolutamente válido no debate acadêmico. São tendências perceptíveis de acordo com o momento histórico que vivemos e, daqui alguns anos, posso tranquilamente – e sem qualquer pudor – mudar novamente meu pensamento.

Em outro caso polêmico, recentemente presenciamos o “cancelamento” do youtuber Monark, que aparentemente queria se posicionar no sentido de que devemos, sim, permitir os discursos problemáticos no contexto político, entretanto, sem conhecimento do debate científico para expor suas ideias de forma clara, por não conseguir se expressar, acabou se enrolando e falando bobagens que culminaram em prejuízos à sua imagem e causaram transtornos decorrentes das leis de mercado que ele mesmo defende, já que seus patrocinadores, livres que são, decidiram lhe abandonar para evitar prejuízos.

Um dos pontos centrais do erro do Monark – reiterado, diga-se de passagem –, é confundir os limites da liberdade de expressão com alguma tentativa de limitar o próprio pensamento, o que faz repetir em diversas ocasiões, muitas dela em primeira pessoa, que ninguém pode impedir ele de pensar absurdos racistas, nazistas, homofóbicos etc.

A ciência talvez em breve avance ao ponto de ser capaz de descobrir o que os seres humanos estão pensando – o que inspirou o cenário distópico apresentado no filme de 2002, Minority Report –, e um dos debates atuais do Direito Digital é exatamente não permitir que nossos pensamentos possam ser criminalizados, ainda que sejam absurdos.

O que hoje encontra limites jurídicos – e não pode nunca deixar de encontrar –, é a expressão, a externalização do pensamento e não o pensamento em si. Nenhuma liberdade jurídica é absoluta e isso é consenso na doutrina. A liberdade de expressão encontra vários limites, como a propriedade, por exemplo, quando a lei criminaliza revelar segredos industriais, ou impede plágios, ou ofensas à imagem e à honra das pessoas, sempre em atenção a outras normas jurídicas igualmente constitucionais. 

Já a liberdade do pensamento em si, não externado, é, antes de tudo, uma questão fática, por ser impossível, ao menos por enquanto, controlá-la e, juridicamente, quando a tecnologia permitir, se tornará – ao menos dentro do Estado de Direito –, um impedimento jurídico de submeter qualquer pessoa ao controle do pensamento, sendo, portanto, um limite não a quem pensa, mas a quem desejar de alguma forma controlar ou impedir pensamentos – embora eu aposte que teremos inúmeros “acidentes de percurso” e muitas hipóteses de supostas exceções serão transformadas em leis, ou aceitas pelo Judiciário.

Voltando à fala do Presidente da República quando, ainda sendo Deputado Federal, concorria ao posto máximo da representatividade política do povo brasileiro, simulando uma metralhadora, inferiorizou o grupo que se identifica politicamente com o Partido dos Trabalhadores e propôs seu fuzilamento, considero necessário refletir sobre a própria lógica de um Estado de Direito, em que os governantes devem se submeter às normas do ordenamento jurídico, não estando nunca acima delas.

O que vimos nos últimos anos, principalmente durante a pandemia, em incontáveis atos ilícitos praticados pelo Presidente e por diversos seguidores, muitos também representantes do povo, foi uma total banalização desse dever de respeitar as leis. Isso, hoje, me faz refletir se não precisamos tornar o descumprimento das normas jurídicas por quem ocupa cargos públicos eletivos e cargos públicos não eletivos do alto escalão de qualquer dos três Poderes, mais grave do que o descumprimento da lei pelos demais membros da sociedade, sob pena de, não o fazendo, assistirmos ao fim do nosso Estado de Direito.

A fala “Vamos fuzilar os petralhas”, portanto, a meu ver, não só é discurso de ódio e configura, sim, o crime de incitação, como – exatamente pelo seu contexto político –, considero que deveria ser tratada como sendo um agravante ter sido dita por um Deputado Federal, candidato à Presidente da República, representante do povo brasileiro.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.