Golpe e as falsas notícias de ditadura da toga
É preciso evitar mais um Golpe, criado por notícias falsas, que, assim como as eleições visa, pelo desconhecimento, atacar a credibilidade do Poder Judiciário
O direito precisa ser compreendido, em especial o Direito Penal. Isto se faz fundamental em relação à pena, porque, além da prevenção individual, há a prevenção geral, que tem como objetivo fazer com que os demais membros de uma sociedade não pratiquem o mesmo ato tipificado como criminoso em razão da pena aplicada. Ou seja, a justificativa da pena é punir aquele que cometeu um crime para que esse não pratique mais, e que outros vejam a punição para não cometerem o mesmo ato.
Portanto, é preciso explicar porque os acusados dos atos golpistas, e do dia 8 de janeiro, não são injustiçados. Assim como uma campanha, que desacredita as urnas eleitorais, tem a grave consequência de incutir na cabeça das pessoas a deslegitimidade das eleições e do sistema democrático, propagar a ideia de que estamos vivendo “uma ditadura da toga”, visando tirar a credibilidade do Poder Judiciário, um dos poderes democráticos.
Então, por que as pessoas que depredaram prédios públicos no dia 8 de janeiro não são condenadas exclusivamente por depredação do patrimônio público (art.163, III, do CP), cuja pena é de 6 meses a 3 anos? Por que é incorreto dizer que seria impossível aquelas pessoas “desarmadas” dar um Golpe? Por que é incorreta a comparação com outros protestos em que tenham quebrado prédios públicos?
O primeiro elemento a se explicar é o dolo. O crime é feito de dois elementos essenciais. O físico, no mundo real, que é chamado “nexo causal” e o subjetivo, que é a vontade da pessoa que comete o crime. Para se compreender o que é exatamente a parte física do “nexo causal”, se compara com o que acontece quando se joga sinuca: o taco bate numa bola que através da força bate em outras e leva alguma delas à caçapa. Outro exemplo é uma sequência de queda de peças de um dominó: quando o primeiro cai e faz a sequência dos que caírem posteriormente pelo impacto do primeiro. O mesmo ocorre quando alguém aperta o gatilho de uma arma e o projétil é direcionado até a vítima, ou, posteriormente, se verá que o projetil (bala) não acerta a vítima, e sim uma árvore, ou acerta uma terceira pessoa. Da mesma maneira, imagine-se que acerta a vítima, mas essa morre de outra causa. Um piano de cauda que caiu do terceiro andar do prédio no exato momento em que a bala atinge a pessoa que acaba morrendo do impacto do piano e não do tiro.
Passado o elemento físico, o subjetivo, que é a vontade de quem apertou o gatilho, é um dos pontos essenciais do Direito Penal. Chamamos de dolo ou culpa (art. 18 do CP) a vontade.
O dolo é a vontade direta do agente (da pessoa) de realizar o fato, ou ter assumido o risco do resultado. A culpa quando a pessoa não quis o resultado, mas agiu com imperícia, imprudência ou negligência. O maior exemplo desse caso seria um acidente de trânsito: a pessoa sem beber passa um sinal vermelho e atinge um motoboy que vem a morrer. Apesar de não ter querido o resultado, ninguém pode defender que não haja punição. Apesar de não ser a mesma pena de quem quis matar, o fato é que somos responsáveis por resultados que não queríamos, mas deveríamos ter evitado.
Neste ponto é que vem a análise dos atos de 8 de janeiro, e dos anteriores, pelos quais Bolsonaro é acusado. As pessoas que foram depredar os três prédios públicos mais importantes do Poder Democrático brasileiro portavam cartazes sobre intervenção militar, fizeram vídeos pedindo a intervenção do Exército Brasileiro e um Golpe militar. Portanto, em questão de prova do dolo, a vontade daqueles que lá estavam é inquestionável. Eles quebravam os prédios públicos com objetivo de que a sensação de caos provocasse a intervenção das forças armadas. Esse foi o mesmo o objetivo dos atos anteriores após a eleição, interrompendo estradas, colocando bomba em um caminhão tanque no aeroporto de Brasília, tentando invadir a Polícia Federal e queimando ônibus na capital federal no dia da diplomação do presidente eleito. Todos esses atos tiveram um único objetivo: que as forças armadas interviessem para conter um caos. Queriam que as forças armadas fossem obrigadas a “colocar ordem”. Determinados “juristas” chegaram a defender que o art. 146 da Constituição Federal concedia às forças armadas um poder moderador para estabilizar os poderes da República.
Portanto, do ponto de vista do dolo, da vontade, é inquestionável. Todos ali queriam um Golpe de Estado. O argumento de que “sem tanque na rua” não haveria a menor condição de Golpe se desmonta, por que o que aquelas pessoas queriam, estabelecendo caos, eram os tanques da rua. O objetivo era que as armas e os tanques do exército fossem às ruas deter o caos que elas mesmo criaram. Assim, iriam destituir o governo que acabava de ser eleito.
Quando se arromba a porta de uma casa para roubar, não é por violação do domicílio (art. 150 do CP) que a acusação é formulada. A pena é de 1 a 3 meses por essa violação, mas sendo a acusação de furto qualificado pelo arrombamento (art. 155, § 4º , III, CP) a pena atinge de 2 a 8 anos. No roubo, se houver uso de arma e violência, chega a 10 anos. Portanto, o arrombamento era parte do crime, como a destruição dos prédios era um passo para o Golpe.
Há dois outros exemplos muito interessantes sobre a vontade – clássicos – que são do crime preterdoloso e do dolo eventual: uma pessoa em uma briga dá um soco em outra, que acaba caindo do chão e bate a cabeça no meio fio e morre. Como a intenção não era a de matar, mas de lesão corporal pelo soco, a acusação não será de homicídio (art. 121 do CP), mas de lesão corporal (art.129 do CP – pena de 3 meses a 1 ano), mas o resultado agravando pela de morte (§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo), cuja pena será de 4 a 12 anos.
No dolo eventual, o sujeito não quer a morte diretamente, mas admite o resultado, como o caso de colocar uma bomba para abrir o cofre que acaba matando pessoas, a pessoa vai responder por homicídio.
A questão do dolo (vontade) é tão relevante que alguém que atira em outro para se proteger achando que a pessoa estava armada, e essa não estava, entende-se que a vontade foi afetada pela impressão, e, por isso, admite-se a legítima defesa. Chama-se legítima defesa putativa quando o autor entendeu que algo existia equivocadamente[1].
Nesse ponto, pretende-se que o leitor compreenda que a depredação dos prédios públicos não era o objetivo final daqueles que estavam no dia 08 de janeiro, mas uma parte do crime como do arrombamento de uma porta que pretende assaltar uma casa de alguém. A vontade, o dolo, era que o exército realizasse o Golpe, causando um caos que obrigaria uma intervenção. Portanto, os fatos deles estarem desarmados era irrelevante, já que esperavam uma intervenção armada após a violência que realizaram, atacando policiais e quebrado os prédios.
Essa é a razão de que parte dos que lá estavam tomaram penas graves. Elas não decorrem de uma pintura de batom, do furto de uma bola ou de terem quebrado uma vidraça, mas do que eles queriam com isso – Golpe de Estado. Muitos tiveram penas alternativas, saíram com monitoramento eletrônico, e fizeram acordos de não persecução penal.
Bolsonaro e militares que estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) são diretamente envolvidos por esse ato, mas não são julgados somente pelos atos do dia 08 de janeiro. São acusados por atos que se iniciaram no governo e se estenderam até este dia. Os atos são vários e provados. A formulação de minutas que pretendiam dar contornos de legalidade ao plano do Golpe, como intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para impedir a posse do presidente eleito. Pior, um plano escrito, gravado e impresso, de envenenamento do presidente eleito e do vice, e o sequestro do Ministro Alexandre de Moraes.
Pode-se argumentar que apesar dos planos, apreendidos, provados e confessados, pelo Bolsonaro, que dizia que estudava meios legais para impedir a posse, do formulador do plano apreendido de assassinato que disse que eram somente pensamentos, dos depoimentos do general e almirante comandante do exército e da aeronáutica de que o Bolsonaro se reuniu com os mesmos, informando do desejo de intervir no TSE e baixar os decretos, pedindo apoio negado pelos dois, mas dado pelo comandante da marinha, de que tudo foi feito, mas não executado.
Ocorre que, o crime que são acusados não é de Golpe, mas de tentativa de Golpe. E por que o que ocorreu foi uma tentativa e não uma mera cogitação? Porque Bolsonaro, perdendo a eleição, não fez nenhuma manifestação de que a eleição tinha acabado, manteve os acampamentos que pediam Golpe, manteve um constante clima de que algo poderia ocorrer para impedir a posse, manteve todo tempo uma forma de manter as forças que bloquearam as estradas, que pregavam o Golpe, que pediam, e que queimaram os ônibus, colocaram bomba em um caminhão tanque, que mantinham uma força golpista que desaguou em 8 de janeiro, mas se iniciou muito antes.
Durante o mensalão – processo que correu no STF, quando vários deputados e membros do PT foram acusados de criar uma mesada para manter votação a favor do governo –, uma deturpação de uma teoria chamada de “domínio do fato” para condenação foi usada pelo Ministro Joaquim Barbosa. O raciocínio foi que se alguém tem domínio sobre outras pessoas, que tem comando hierárquico de fazer com que algo ocorra, como no “nexo causal” referente aos dominós, essa pessoa deve ser condenada pelos atos dos seus comandados. A teoria original não é essa, mas protetiva, de que alguém precisa ter o domínio para ser responsabilizada, e não ao contrário.
Sobre ambos os pontos de vista, os acusados do processo principal, Bolsonaro e os que ali compõe o processo poderiam ter interrompido o clima de Golpe, os acampamentos, a vontade que emanava deles e se espraiava nos seus seguidores, de rompimento institucional. Não interromperam porque esperavam que eles gerassem esse caos, enquanto Bolsonaro era presidente para possibilitar o Golpe, e depois que não conseguiu e saiu do território nacional, o caos fosse criado e que o governo eleito fosse derrubado.
O que estamos vendo como consequências das intenções golpistas que passaram de meras intenções ou de atos preparatórios, e se configuraram tentativas de Golpe para configuração dos meios para execução, e que não chegaram à conclusão por falta de apoio dos Estados Unidos, governado pelo Partido Democrata naquele momento, falta de apoio do exército e da aeronáutica, impossibilidade de execução do plano de envenenamento do presidente eleito e do vice pela segurança em volta deles, e porque, apesar de todos os esforços, o caos não se estabeleceu.
Mas, como se disse, os crimes de tentativa de Golpe são tentados.
É preciso evitar mais um Golpe, criado por notícias falsas, que, assim como as eleições visa, pelo desconhecimento, atacar a credibilidade do Poder Judiciário, fazer compreender o direito penal é fundamental para evitar discursos extremistas contra o Poder Democrático.
[1] Descriminantes putativas (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984 - § 1º É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




