Golpes bolsonaristas: quando a palavra revela o reverso do poder
"A história não se encerra em vingança, mas em memória", escreve a colunista Sara York
O inconsciente tem seus atalhos - e, por vezes, os atalhos viram armadilhas. Ao longo de sua trajetória política e, sobretudo, durante a presidência, Jair Bolsonaro construiu um repertório de frases que, sob o disfarce de "sinceridade", deixaram escapar o avesso de seu projeto de poder. Eu mesma, aprendi o que era "golden shower" depois de ser interpelada por um aluno de 11 ou 12 anos em minha aula de inglês. Eu perguntou sem reservas, talvez pela ingenuidade: - Professora, o que é golden shower? Eu fiquei chocada pensando que pudesse ser algo relacionado a mim enquanto trans, e perguntei onde você ouviu esse termo?
Ao que ele respondeu: - Eu vi no twitter do presidente com meu pai!
Eu poderia até explicar a prática BDSM, mas naquele momento apenas tentava compreender que o então presidente Jair Bolsonaro havia postado em sua rede social sobre, segundo ele, "o que os LGBT fazem nas Paradas Gay" (sic). O fato é que suas declarações, quase sempre proferidas em tom de bravata, escancaram a violência que ele próprio tentava naturalizar.
O discurso da força como fetiche
"Bandido bom é bandido morto", "policial que não mata não é policial", "quero dar carta branca para a polícia matar": cada uma dessas sentenças foi repetida em palanques, entrevistas e lives, criando um imaginário em que a vida alheia vale menos do que a retórica de "lei e ordem". É a fantasia de uma justiça instantânea, que dispensa devido processo legal e transforma o Estado em algo próximo do justiçamento ou de um faroeste. Talvez por isso o peso de sua condenação seja tão importante para aqueles que ainda dependem de um Estado para existir no mundo de regras com as quais homens como ele acham flexíveis.
O alvo preferencial: corpos dissidentes
A mesma lógica de exclusão reaparece quando Bolsonaro se refere à população LGBTQ+. "O Brasil não pode ser um paraíso do turismo gay, nós temos famílias", "se eu vir dois homens se beijando, eu vou bater neles", "eu seria incapaz de amar um filho homossexual". Nesses enunciados, o que se revela é o medo da diferença, a tentativa de rebaixar identidades à categoria de ameaça - um gesto que, lido psicanaliticamente, é também projeção: o inconsciente recusa, mas nomeia. E olha que tipo de filhos foram expostos nas últimas cenas dessa novela de família!? Filhos que surfam no privilégio branco-cis-hetero-cristão para se elegerem, mas que de fato são ameaçadores, inrustidos, com complexidade de fala, segredos e tudo que a família branca cristã brasileira jamais imaginou que fossem.
O retorno do recalcado
Hoje, esse discurso encontra um contracampo jurídico intenso. O ex-presidente é réu, ao lado de Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, acusado de cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
No julgamento histórico, já há maioria formada para condenar o tenente-coronel Mauro Cid pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. O relator Alexandre de Moraes e o ministro Flávio Dino votaram pela condenação de todos os réus. A confirmação simbólica veio com a ministra Cármen Lúcia, cuja decisão - marcada por um tom firme e feminista - consolidou a maioria na mais importante condenação da história democrática brasileira.
O revés da palavra
A psicanálise ensina que a fala nunca é neutra: o que se quer esconder acaba irrompendo. As frases de Bolsonaro, que pretendiam exibir força e controle, retornam agora como prova de intolerância e violência - um verdadeiro golpe do inconsciente. E se ele próprio pregava "leis duras" contra quem ameaça o Estado, ironicamente é sob essas mesmas regras que responde, hoje, ao Judiciário.
A história não se encerra em vingança, mas em memória: o verbo que ontem incitou a eliminação do outro é o mesmo que, agora, inscreve no réu a falta de que tanto tentou escapar - aquela que revela a plasticidade da lei, sonhada por nós, mortais comuns, como horizonte de justiça. Despertaremos talvez tristes por ver a justiça levada a seus limites mais extremos, mas também aliviados ao perceber que o Estado, a polícia e a sociedade que defendemos, apesar de suas falhas, conseguem por vezes proteger justamente aqueles que não têm ninguém a seu favor.
Até a vida de um criminoso julgado culpado, que será apenas privado de liberdade, apesar dos berros "bandido bom é bandido morto", ao longo de sua longa vida de prazeres.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




