Grampos ilegais, exceção judicial e lawfare: a engrenagem oculta da Operação Lava Jato
Advogadas, doutoras em direito internacional, Professoras da UFPR e UFRJ, integrantes da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do CLAJUD
Larissa Ramina e Carol Proner, jurista*
A reportagem publicada por Daniela Lima, no UOL, revelou que a Polícia Federal realizou operação de busca e apreensão na 13ª Vara Federal de Curitiba — marco simbólico da Operação Lava Jato — na qual foram localizados documentos, relatórios e um áudio de aproximadamente 40 minutos que sugerem a existência de um circuito informal de produção de informações à margem dos autos judiciais. O material apontaria para o uso de delatores na realização de escutas e gravações clandestinas envolvendo autoridades com prerrogativa de foro, como desembargadores, agentes políticos e o presidente do Tribunal de Contas do Paraná, sem a devida autorização de instâncias superiores, em aparente afronta ao ordenamento jurídico.
A diligência foi determinada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e conecta-se diretamente às denúncias de Tony Garcia, que afirma ter atuado como colaborador informal da Lava Jato, realizando monitoramento ilegal de autoridades e advogados fora de qualquer procedimento judicial regular. Conforme a apuração, a Polícia Federal investiga se tais condutas integravam um esquema estruturado de vigilância e coleta paralela de dados sensíveis, supostamente utilizados para pressão institucional, antecipação de estratégias defensivas e controle político, recolocando em debate a legalidade das práticas empregadas pela Operação.
Nesse contexto, as declarações de Tony Garcia lançam nova luz sobre condutas que, longe de se apresentarem como episódios isolados, parecem indicar uma lógica estrutural de funcionamento da Lava Jato. Ao sustentar que realizou gravações clandestinas sem autorização judicial, supostamente a mando ou com o conhecimento do então juiz Sérgio Moro, Garcia recoloca no centro da discussão a conformidade dos métodos adotados com o Estado de Direito e o papel do Judiciário na eventual consolidação de um regime de exceção sob o discurso do combate à corrupção.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, a realização de grampos sem ordem judicial configura violação frontal aos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à ampla defesa e ao contraditório, ao devido processo legal, todos consagrados no artigo 5º da Constituição Federal, além de possíveis crimes de abuso de autoridade, violação de sigilo de comunicações, prevaricação, entre outros. Mais grave ainda é a hipótese — ainda pendente de apreciação definitiva pelo Judiciário — de que tais práticas tenham sido estimuladas ou toleradas por um magistrado, rompendo a separação entre acusação e juiz e corroendo o princípio da imparcialidade, pedra angular do Estado de Direito.
As alegações de Tony Garcia não surgem no vazio. Elas se inserem em um contexto já amplamente reconhecido pelo STF, que declarou a suspeição de Sérgio Moro no caso Lula, anulou condenações e reconheceu a existência de conluio entre juiz e acusação. A Lava Jato, como demonstrado por decisões judiciais, mensagens divulgadas e análises críticas, operou frequentemente à margem da legalidade estrita, adotando métodos típicos de um direito penal do inimigo, em que garantias fundamentais são relativizadas em nome de um suposto bem maior.
Nesse cenário, o uso de colaboradores informais para produzir provas ilícitas revela uma racionalidade própria da exceção: cria-se uma zona cinzenta em que agentes não oficiais executam tarefas que o Estado não poderia realizar legalmente, permitindo às instituições manter uma aparência de legalidade enquanto se beneficiam de informações obtidas por meios ilícitos. Trata-se de uma técnica conhecida em contextos de autoritarismo e amplamente estudada na literatura crítica do direito e das relações internacionais.
Essa lógica se articula diretamente com o conceito de lawfare, entendido como o uso estratégico do direito como arma de guerra política, econômica e institucional. No caso brasileiro, a Lava Jato não apenas destruiu reputações e carreiras políticas, mas produziu efeitos profundos sobre a soberania nacional, contribuindo para o desmantelamento de empresas estratégicas, como a Petrobras e grandes construtoras, e para a reconfiguração do campo político que culminou na eleição de um projeto ultraliberal alinhado a interesses externos.
Sob a perspectiva da guerra híbrida, as práticas denunciadas por Tony Garcia assumem contornos ainda mais graves. A produção clandestina de informações, o monitoramento informal de advogados e atores políticos e a instrumentalização do sistema de justiça integram um repertório típico de estratégias de desestabilização institucional, em que o direito deixa de ser um limite ao poder e passa a ser um de seus instrumentos centrais.
Ainda que as acusações específicas de Garcia dependam de comprovação judicial, o pano de fundo já está dado: a Lava Jato operou em um ambiente de suspensão seletiva da legalidade, no qual a eficácia política foi priorizada em detrimento das garantias constitucionais. A eventual confirmação de que grampos ilegais foram realizados com o aval de um juiz apenas aprofundaria um diagnóstico que hoje é difícil de negar: o de que o sistema de justiça brasileiro foi capturado, em determinado momento, por uma lógica de exceção incompatível com a democracia.
O caso Tony Garcia, portanto, não deve ser tratado como um episódio marginal ou como uma disputa pessoal entre indivíduos. Ele constitui mais um elemento de um processo histórico mais amplo, no qual o direito foi mobilizado como ferramenta de poder, com impactos duradouros sobre a democracia, os direitos fundamentais e a soberania do Brasil. Enfrentar esse legado exige não apenas responsabilização individual, mas uma reflexão estrutural sobre os limites da atuação judicial e sobre os riscos de se normalizar a exceção em nome de cruzadas morais.
O Brasil conquistou muito com o lema “união e reconstrução”, mas precisa avançar na “responsabilização”. A turma do ex-juiz de Curitiba, certos procuradores, desembargadores e agentes envolvidos na indústria da chantagem e arapongagem, precisa ser punida. Eugênio Zaffaroni usa uma expressão perfeita para casos assim: “delinquência judicial”.
Ainda que não haja, no plano interno, responsabilização individual dos agentes envolvidos, práticas como a autorização, estímulo ou utilização de grampos ilegais podem acarretar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro, uma vez que configuram violações diretas às garantias judiciais e à proteção da vida privada previstas nos artigos 8º e 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ao admitir ou tolerar a produção de provas ilícitas no âmbito de investigações e processos judiciais, o Estado incorre em descumprimento de suas obrigações internacionais de respeitar e garantir os direitos fundamentais sob sua jurisdição, abrindo espaço para sua responsabilização perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, independentemente da punição individual dos responsáveis.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




