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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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Guerras culinárias

A companhia aérea Virgin Atlantic resolveu incluir no seu cardápio uma deliciosa e suculenta “salada de cuscuz palestina”. Não tardaram em surgir críticas de passageiros descontentes com a “homenagem”. A guerra pelo poder de nomear a salada, se “palestina” ou “judaica”, não é uma quimera, uma disputa infantil. Comer, definitivamente, é ato político

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A companhia aérea Virgin Atlantic resolveu incluir no seu cardápio uma deliciosa e suculenta “salada de cuscuz palestina”. Não tardaram em surgir críticas de passageiros descontentes com a “homenagem”, acusando a voadora de “simpatizar com terroristas”. Houve quem sugerisse a mudança do nome da iguaria, para “salada judaica”, porque, afinal de contas, é preciso levar em consideração que os judeus “vivem, na terra que eles (os palestinos) dizem ocupar, há mais de três mil anos”. Diante de tamanha pressão nas redes sociais e da ameaça de um boicote milionário, a Virgin Atlantic se viu obrigada a “rever seus conceitos”, neutralizando suscetibilidades – quer dizer, deixando de ferir uma, para ferir a outra -, rebatizando o acepipe singelamente de “salada de cuscuz”.
 
A guerra pelo poder de nomear a salada, se “palestina” ou “judaica”, não é uma quimera, uma disputa infantil. Aquilo que comemos, as comidas, a elaboração cultural dos alimentos, estão encharcadas, embebidas de narrativas históricas e memórias afetivas e gastronômicas que embasam a elaboração de nossas identidades. Não é à toa que a culinária é parte fundamental na afirmação de identidades étnicas. Compartilhar um prato “típico” é compartilhar uma vivência comum, é autorizar e legitimar a existência de quem nos oferece o manjar. O resultado da guerra pelo poder de nomear, a capacidade de apropriar-se simbolicamente de determinados bens materiais – uma mistura de grãos, folhas e um molho vinagrete, por exemplo - significa, portanto, a possibilidade de ser ou não reconhecido como um “outro significativo”. É a diferença entre a visão e a invisibilidade. Entre vida e morte.
 
A apropriação simbólica da comida como meio de expressão identitária fez-me lembrar de um texto muito legal do antropólogo Peter Fry, chamado “Feijoada e ‘soul food’: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais”, publicado originalmente em 1977, em que ele relata exatamente a importância de compreendermos o “lugar da fala”, a perspectiva a partir da qual se definem os critérios de pertencimento e exclusão das fronteiras do grupo e a centralidade das relações de poder neste contexto. Vale a reprodução de uma passagem, que serve para ilustrar, também, o que aconteceu no caso da companhia aérea:
 
“Em julho último, em Nova Iorque, decidi oferecer a meus amigos um prato brasileiro típico. Com muita dificuldade, conseguir encontrar feijão preto, costeletas de porco defumadas, couve e demais pertences e assim pude preparar uma feijoada, que servi com a devida pompa. Foi aí que um de meus amigos, um preto do Alabama, depois de ter cuidadosamente olhado e cheirado a travessa, destruiu todo o suspense observando que se tratava simplesmente da comida à qual estava acostumado desde criança. O que é, no Brasil, um prato nacional é, nos Estados Unidos, soul Food. Está claro que a origem do prato é a mesma nos dois países, pois em ambos este item da cultura culinária foi elaborado pelos escravos utilizando as sobras do porco desprezadas por seus senhores. A diferença está no significado simbólico do prato. Na situação brasileira, a feijoada foi incorporada como símbolo da nacionalidade, enquanto nos Estados Unidos se tornou símbolo da negritude, no contexto do movimento de liberação negra”
 
Comer, definitivamente, é ato político.

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