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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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Humanidade seletiva

É claro que, numa cidade com milhões de habitantes, impossível estabelecermos relações afetivas com todos, nem mesmo com muitos, mas é uma característica das metrópoles contemporâneas o individualismo enquanto valor

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A sensação é desesperadora. Lembro bem da cena. Devia ter uns seis ou sete anos. Minha mãe aos berros chamando pela minha irmã mais nova, no meio da praia do Leblon lotada, sol a pino. Onde havia se metido a guria? Não sei dizer como se resolveu a situação, quem a achou, só sei que a achou porque ela está bem e com saúde, grávida do meu segundo sobrinho. Imagino a impotência de minha mãe, cercada por milhares de pessoas, mas completamente sozinha, a "multidão solitária" de que nos fala o sociólogo David Riesman. Na verdade, alguns grãos de areia naquele deserto de gente se importaram com o drama familiar que se desenrolava, tenho que ser justo. É claro que, numa cidade com milhões de habitantes, impossível estabelecermos relações afetivas com todos, nem mesmo com muitos, mas é uma característica das metrópoles contemporâneas o individualismo enquanto valor. Farinha pouca, meu pirão primeiro. E uma das consequências nefastas da impessoalidade das relações humanas, tão cara à modernidade, é, exatamente, a potencial desumanização daqueles que nos cercam.

Anos mais tarde, voltava do curso de inglês e esperava, em frente à igreja do Largo do Machado, o ônibus da linha 184 que me levaria para casa. Devia ter os meus doze ou treze anos. Um menino de rua se aproximou e mandou que eu abrisse a mochila. Eu o fiz imediatamente e, vendo ele que nada havia de valor, foi embora. Havia um monte de gente à minha volta, adultos, homens e mulheres, que poderiam me defender, mas tudo se passou como se nada tivesse acontecido. Entendo perfeitamente o medo que as pessoas sentem, de perder mesmo a vida por motivo fútil, um celular ou uma bolsa de marca, embora, neste caso específico, se tratasse de uma criança como eu, indefesa tanto quanto eu se os adultos que ali estivessem tomassem alguma atitude. Seriam todos paulistas? Como dizia Nelson Rodrigues, "a pior forma de solidão é a companhia de um paulista"...

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É carioca também. Meses atrás, levava meu filho de seis anos à escola. Ainda perto de casa, uma moça gritava coisas ininteligíveis. Num primeiro momento, eu e muitos outros achamos que se tratava de uma louca varrida. Estávamos errados. Um pouco menos exaltada, dizia que um homem havia acabado de mostrar-se como veio ao mundo para sua filha pequena, que também levava para a escola. Ainda segundo seu relato, após satisfazer sua necessidade exibicionista, o cidadão colocou o dito cujo para dentro da calça e seguiu seu caminho, lépido e fagueiro. Daí o desespero daquela mãe, porque, apesar de gritar a quem quisesse ouvir, que um pedófilo havia acabado de molestar sua filha, ninguém se dignou a correr atrás do malandro. Ninguém quis ouvir, todos estavam surdos, parafraseando o clássico de Roberto Carlos. Eu poderia ter ajudado, fui parte cúmplice da multidão solitária, estava levando meu filho para a escola, essa foi minha desculpa interna. Tive o cuidado, entretanto, de lhe explicar o que havia acontecido e o que devia fazer se lhe acontecesse algo semelhante.

Tudo isso me veio à mente ao ver uma imagem repulsiva, incompreensível para padrões mínimos de humanidade, de civilidade. Fruto da incompetência, irresponsabilidade e corrupção, por que não, que assola a administração pública em todos os níveis desta república bananeira, vítimas de um homicídio institucionalizado, corpos de cidadãos cariocas jaziam nas areias da praia de São Conrado, inertes, mortos, jogados lá de cima, da ciclovia que desabou após uns poucos meses de inauguração, mais um dos "legados olímpicos" pagos a peso de ouro pela prefeitura da cidade. Cobertos por algum tecido, esperavam recolhimento ao Instituto Médico Legal muitas horas depois da tragédia, o que, por si só, já seria motivo de vergonha alheia, nossa em relação aos agentes públicos. No entanto, o que chamava a atenção era um grupo de banhistas que, ignorando ou fingindo ignorar a miséria humana que se abateu logo ali, a metros de distância, jogava uma animada "pelada", isso mesmo, jogava bola. Mata, mas não esculacha, certo? Tudo bem, não era parente, não precisava se importar, mas também tripudiar da dor alheia ultrapassa todos os limites do individualismo, da desumanidade que hoje graça em nossa sociedade. Uma psicanalista interpretou a inação deste grupo como uma dificuldade em lidar com a morte, de encará-la de frente. Eu diria que é falta de compostura e a mais básica solidariedade com o outro, por menos que este outro valha em termos afetivos.

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No ano passado, uma imagem horripilante correu o mundo. Coincidentemente, também registrada numa praia, desta vez na Turquia. Com a cara enterrada na areia, na beira d'água, o corpinho solitário de uma criança síria, que tentava fugir da fome e da violência que graça no país após anos de guerra civil, é socorrido por um policial. Não havia testemunhas jogando bola. Dias depois, a criança foi enterrada em sua cidade natal.

A paisagem é a mesma, as reações são distintas. Será que a compaixão com crianças deve ser maior do que a dispensada a adultos? Pessoalmente, não acho que este seja o caso. Acho, sim, que os cariocas estão anestesiados com a violência nossa de cada dia, a sucessão de crimes dolosos e culposos é tão frenética que mal dá tempo de assimilar a dor. Talvez a desumanização seja um mecanismo de defesa para que evitemos a insanidade mental. A incapacidade de espantar-se com cadáveres estendidos na areia, mais do que isso, toma-los como fatos banais, causa repulsa e desesperança.

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Está cada vez mais difícil ver a luz no fim do túnel.

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