Inimigo do fim
Ele diz como quem esconde um segredo: “Era dádiva, virou dúvida, agora é dívida”
É mais do que apelido, é criação de publicitário. “Jurandir é o inimigo do fim”. Ninguém sabe como surgiu, mas todos concordam, Jurandir é o cara que chama a saideira de penúltima, é o que não dá chance de a conversa terminar, é o último a deixar a festa e sempre pede o bis. Em outras palavras: “o inimigo do fim”.
Sabe e gosta de contar casos. Para fazer suspense criou uma frase de efeito, que segundo ele resume a intrincada história que vai me revelar: “Era dádiva, virou dúvida, agora é dívida”.
Encontro o “inimigo do fim” no apartamento dele. Uma cobertura nova e já cheia de memórias, vestígios.
Jurandir é jornalista aposentado, sempre gastou muito menos do que ganhou. Um homem quase rico, dá para dizer. Há alguns anos, se mudou para uma cidade bem pequena, uma das menores do interior paulista.
Faz alguns anos, o minúsculo município viu subir o primeiro e único prédio com admiração. O colosso, com seus imponentes seis andares e vidros fumê, é a única construção com elevadores, garagem subterrânea e outras invenções de cidade grande.
Os habitantes mais abastados começaram a disputar os apartamentos no Imperial Place. O juiz, o primo da prefeita, o dono dos três postos de combustível, o construtor... cada um comprou o seu. Já o mais poderoso fazendeiro da região pagou a cobertura à vista. Exportador de laranja e café, foi o que gastou mais e aproveitou menos. Morreu meses depois.
É aí que o Ariosto entra na história. Sobrinho do fazendeiro, que era viúvo e não tinha filhos, Ariosto recebeu a cobertura de herança. O maior e mais disputado apartamento todinho pra ele. Cinquentão, solteiro, ele despertava comentários e boatos.
- O que será que fica fazendo lá solitário?
- Dizem que lá de cima espia a gente cá embaixo com um binóculo.
- Soube que recebe gente.
- Gosta de homem ou de mulher?
Já eram seis meses e Ariosto não saía da boca do povo. Então, a fama piorou.
- Ouvi por aí que o Ariosto tá com a corda no pescoço.
- Sério? Devendo, é?
- Pros bancos e pro agiota.
Em uma conversa de bar, uma daquelas que o Jurandir não deixa terminar, alguém sussurra que a única saída do Ariosto é vender a cobertura.
Jurandir, ainda com a cara de pau de repórter, procura Ariosto, que é direto e reto.
- Eu te vendo. Mas a gente faz assim: você acerta as minhas dívidas e o que faltar para inteirar o preço do imóvel você me paga à vista.
- Fechado.
As mãos de Jurandir e Ariosto se apertaram e balançaram.
No dia seguinte, Jurandir começou a levantar as dívidas de Ariosto. O primeiro susto foi na pequena farmácia. Antibióticos, anti-rugas importados, emagrecedores potentes. Tudo caro, tudo fiado.
Na única pizzaria da cidade, a conta também assombrou. Para cada redonda de calabresa, duas garrafas de vinho, fora licores e sobremesas.
Sempre no fiado, Ariosto estava pendurado no açougue, devia no posto de combustível, entrou no vermelho na sapataria e com o marceneiro; também passou para a lista dos devedores do IPTU, deixou de pagar o condomínio do Imperial Place. É caloteiro, gritou um vizinho, durante a assembleia.
Sem falar no dinheiro emprestado com o agiota. Soma daqui e multiplica dali, era muito mais que Jurandir imaginava. Ele então me pergunta: “Entendeu a frase? “Era dádiva, virou dúvida, agora é dívida”.
A pausa e o pouso.
Jurandir silencia, me encara e então aterrissa em outro ponto da história, como a passear pelas páginas de um romance. “Quando parecia que Ariosto já era um ficha-limpa, vem a surpresa: a velha Kombi branca com que ele chegou à cidade carregando a mudança, também estava ameaçada. Abandonado na garagem do prédio, o carro estava corroído. Era até difícil saber se a Kombi tinha mais ferrugem ou multas”.
Jurandir me conta que, mais uma vez, pagou as despesas, mandou arrumar as pequenas batidas, providenciou pintura completa e a corajosa Kombi ressurgiu.
Diante da transformação, Ariosto, que no início, disse que não queria saber da “lata velha” mudou de ideia. Livre das dívidas e morando de aluguel, implorou com a urgência de um esfomeado.
- Vende pra mim, vai. Pago trinta e cinco mil.
Jurandir faz suspense e sai da sala. Pergunto o que ele resolveu. São duas da manhã e, do fundo da cozinha, “o inimigo do fim” grita. “Calma, se eu contar a história completa estraga tudo”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

