Jean-Luc Godard: Imagem e Palavra
Por Fernão Pessoa Ramos
(artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)
Este segundo segmento se inicia com uma bela passagem de “A Arca Russa” de Alexandr Sokurov, filme que quer contar 300 anos da história russa num longo plano sequência de 96 minutos através do Palácio de Inverno de São Petsburgo, passeando pelos quadros do Museu Hermitage. Após a citação de Joseph de Maistre, há a imagem detida da lápide de Rosa de Luxemburgo (trabalhada digitalmente em suas cores), bandeiras do ISIS em suas caminhonetes, bandeiras americanas na frente de limousines, expressões agudas em quadros de Hieronymus Bosch. Onipresente, a imagem do horror é acompanhada de ruídos da guerra. O trabalho com o som parece ser particularmente forte neste momento.
O terceiro segmento de “Imagem e Palavra” surge carregado por viagens e imagens de filmes (narrativas) com trens. É uma espécie de porta de saída, um parêntesis à representação do vento da história tentando se erguer, constantemente acossado, baqueado pelo horror. Os trens, as partidas, são um respiro, mas eles também trazem para os trilhos a imagem sangrenta. Este é igualmente o segmento das flores. Embora elas surjam em outros momentos, há aqui explosões de flores, planos com cores intensas e artificiais que circundam os trilhos.
O título do segmento reproduz um verso do poeta metafísico Rainer Maria Rilke: “ces fleurs perdues entre les rails, dans le vents confus du voyage” (“estas flores perdidas entre os trilhos, no vento confuso da viagem”). Nos trilhos, pelos trens, um momento privilegiado é o de Buster Keaton às voltas com o movimento sincopado de si mesmo em “A General”, tentando passar de um vagão para outro, sem ir a lugar nenhum, com o trem em movimento. Em contraponto, temos a sequência de um filme de Jacques Tourneur (“Berlin Express”/1948), estilo “noir”, filmado no imediato pós-guerra.
A divisão dos vagões segue de acordo com a apresentação dos personagens na trama, cada parte isolando a exposição das personalidades no espaço de vagões sucessivos. Entre eles, está um resistente alemão perseguido que será protegido pelos passageiros anônimos. À ordem racional expositiva da guerra, da resistência e do mundo “noir”, Buster Keaton fornece uma variante poética, meio cômica, com sua ação sem consequências, ou de consequências duvidosas, onde a finalidade encavalada em gestos sincopados reage sobre si em circuito fechado, até a imobilidade.
Surgem outras imagens de um documentário mudo, no qual trens atravessam túneis e abismos, com planos subjetivos da cabine que dão tensão e movimento a este sentido de lirismo, perdido entre escape, viagens, fugas, flores, que deixamos para trás. É a Arte que amarra este movimento, conforme nos afirma novamente a voz fora de campo de Godard, sussurrando através de uma imagem de garotos em volta da lanterna mágica: “Quando um século se dissolve lentamente no seguinte, alguns indivíduos transformam os meios antigos nos meios novos. São estes últimos que chamamos Arte. A única coisa que sobrevive de uma época é a forma de arte que ela cria. Nenhuma atividade se tornará arte antes que sua época termine. Em seguida esta arte desaparece”.
As partidas e chegadas em cascata dão lugar ao quarto segmento de “Imagem e Palavra”, intitulado, seguindo Montesquieu, “O Espírito das Leis”. Ele parece complementar o segundo segmento, “As Noites de São Petsburgo”, como um remédio que não cura o sintoma. “O Espírito das Leis” é a decorrência direta da elegia da guerra e da violência em “As Noites de São Petsburgo”. Faz um contra-espelho iluminista, o “espírito das leis”. Mostra-se na narrativa pelas citações à Montesquieu e aos “pais fundadores” da civilização norte-americana.
Este segmento, dedicado às leis, é baseado na demanda de justiça e nas dificuldades de fazer que seu eixo não gire no vazio. Abraham Lincoln tem espaço personificado por um jovem e idealista Henry Fonda, citado longamente através da obra central da filmografia de John Ford, “Young Mr. Lincoln” (“A Mocidade de Lincoln”/1939). Nela, o diretor Ford, o ator Fonda, o personagem Lincoln, e o filme parecem querer traduzir, pois acreditam, os melhores ideais ianques que sustentam até hoje a crença em sua democracia.
Em novo momento de ascensão ideológica, depois da crise de 1929, e logo antes da entrada do EUA na Segunda Guerra Mundial, Ford consegue vibrar com a organicidade social vislumbrada nesses ideais de justiça. Mas Montesquieu e os “pais fundadores” do projeto civilizatório norte-americano, são carregados em “Imagem e Palavra” pela voz soturna fora de campo de Godard, em modalidades desafinadas. O vento da irracionalidade, o peso da brutalidade e do imperialismo, parecem fazer contraponto ao iluminista “espírito das leis”. A força das pulsões de morte borbulha por baixo e ferve, imagem de sangue, de guerra e holocausto (uma das obsessões recorrentes em Godard). Coloca na berlinda o espírito iluminista, desconfiado, como bom francês da segunda metade do século XX, de seus limites para ser fio condutor propositivo da história.
As referências ao livro de Montesquieu são diversas e o próprio frontispício do livro surge como imagem – mas a sequência que inicia este quarto segmento foi tirada do grandioso documentário “La Commune, Paris 1871”/2000, obra maior do diretor Peter Watkins, sobre a revolta francesa na Paris do século XIX. É, portanto, através desta toada, fazendo contraponto entre a Comuna de Paris e o “Espírito das Leis”, que avançamos no quarto segmento de “Imagem e Palavra”.
A passagem de “Young Mr. Lincoln” é antecedida por um breve flash de “O Homem da Câmera”, de Dziga Vertov, espécie de reminiscência do passado maoísta de Godard em 1968. A imagem da deformação em “Freaks” (1932, Tod Browning) surge logo depois de “Young Mr. Lincoln” e o paralelo pornográfico da imagem “lamber o saco” que sucede dá a medida. Depois de Lincoln, Godard encontra a questão da fé e seus afetos forçando o limite da lei. “O que importa, se tudo é graça” nos diz de novo a voz cavernosa godardiana sobreposta à imagem de “Journal d”un Curé de Campagne” (Robert Bresson/1951) e de Ingrid Bergman, como Joana d”Arc (Victor Fleming/1948), ardendo numa fogueira com expressão mais de gozo que sofrimento.
A modalidade ensaística de “Imagem e Palavra”, no degrau que a escritura se instaura, não faz caber, nem se deve buscar, asserções claras para saciar a boa consciência, seja reivindicatória ou indignada. A visão crítica que Godard possui da civilização ocidental e, principalmente, do cinema norte-americano, é misturada à contraditória admiração que nutre por Hollywood, desde os tempos do “Cahiers”.
É ela que dá o centro de gravidade em “Histoire(s) du Cinéma” e surge claramente em sua carreira em filmes como “À Bout de Souffle”/1959, “Une Femme est um Femme”/1961, “Le Mépris”/1963, “Alphaville”/1965, “Made In USA”/1966, entre outros. Em “Imagem e Palavra” nos situamos no embate entre o ideal racional-iluminista e a visão godardiana de política e poder. E política/poder sempre foram elementos presentes na filmografia de Godard, desde o início de seu diálogo com o cinema americano.
Seguindo seu tempo, o diretor francês agora sente-se nas linhas do embate da atualidade, mostrando como podemos enunciar e confrontar as forças irracionais da violência e do fascismo, enquanto figuras fílmicas. O cinema fez parte das novas demandas tecnológicas que, como comunicação de massa, se cristalizaram em modos de expressão nos últimos dois séculos, trazendo sua especificidade para a raiz da arte e da estética.
Em “Imagem e Palavra” as figuras que asserem surgem sempre no modo da citação e da reflexividade. É Godard chegando aos 90 anos com olhar embaçado de cinema. Trabalha a brutalidade da imagem na destruição exercida pela civilização ocidental e o capitalismo consumista, como na citação de “Weekend” (Godard, 1967); a melancolia inconfundível na paradigmática da expressão de Giulietta Masina em “La Strada” (Fellini, 1954); a agonia profunda do fim do mundo que respiramos no caminhar do garoto suicida em “Alemanha Ano Zero” (Rossellini, 1948) (em sobreimpressão com figuras de Goya); no grande peso da culpa do cristianismo que se carrega nas costas em “Dias de Ira” (Dreyer, 1943); e também na falsa culpa de “O Homem Errado” (Hitchcock, 1956 – com um Henry Fonda envelhecido e sem a confiança de 1939 em “Young Mister Lincoln”); no massacre da Columbine High School visto pelos olhos de Gus Van Sant em “Elephant”/2003 (exemplo de “montage interdit”?, diz o letreiro); na já mencionada revolta dos pequenos monstros humanos de “Freaks”/1932, encarnando pela deformidade o grito de insubmissão; na arquetípica imagem de arquivo da garota judia, ou cigana, que levanta brevemente os olhos para câmera antes de ser fechada num vagão para ser embarcada de Westerbrok para Auschwitz, onde seria morta (“Respite” de Harun Farocki/2007).
A determinada altura, ainda neste quarto segmento, letras garrafais ocupam a tela com a frase “montage interdit” (“montagem proibida”), compromisso ético que sustenta, em seu núcleo, o edifício da estética fílmica baziniana dentro da qual, um dia, Godard respirou – antes de questioná-la (“Montage mon bon souci”, publicou). São figuras, portanto, que, no quarto segmento, querem sobrepor enunciados do iluminismo e do horror fascista a fundamentos morais de nosso tempo.
O parafuso espanou e a porca começa a girar em falso, parece nos dizer Godard na atualidade da dissonância. O giro se dilatou tanto que a cobertura no movimento solto deixou de ser natural e o atrito se mostra: “Il y a quelque chose qui cloche dans la loi”, nos diz a voz fora de campo – algo que gira em falso na lei e em seu “espírito”.
Depois da lei, do espírito e da guerra, vem a quinta parte, o segmento desumano de “Imagem e Palavra”, intitulado “La Région Centrale”. Nele, o quinto dedo da mão que pensa o corpo, segundo a exposição inicial do filme, vai agora apontar para o além-corpo. Parece nos mostrar aquilo que se expressa pelo meio do exterior, no “meio” de uma máscara inteiramente maquínica, sem humanidade. A mão que, como pensamento, tateava e sentia a matéria da imagem, agora elege o dispositivo inumano pois é sua fonte.
O dispositivo maquínico da imagem-câmera é o parâmetro possível de positividade na enunciação. O quinto segmento de “Imagem e Palavra” é uma espécie de brincadeira com o indicador levantado da figura de Béssiane que atravessa o filme e compõe seu cartaz. O dedo levantado nos recomenda silêncio como estratégia de ignorância neste mundo que fala demais – e aparentemente nada quer dizer.
“La Région Centrale”/1971 (assim, em francês) é também o título do principal filme de Michael Snow, diretor nascido no Canadá anglo-saxão (Toronto), personagem maior do cinema experimental norte americano dos anos 1960/1970. Apesar da proximidade, na proposta radical e na contemporaneidade, os contatos entre Godard e essa vanguarda, de corte mais plástico e figuração abstrata, foram pontuais, repercutindo esporadicamente em sua obra. Talvez seja uma suposição que esta homenagem direta a Snow queira preencher a lacuna, mas é fato que o trabalho original com o dispositivo cinematográfico no longa “La Région Centrale” (190 minutos) coloca uma nova camada enunciativa nas intuições ensaísticas de “Imagem e Palavra”. É o longa de Snow que dá a âncora título ao quinto segmento do filme.
A proposta vanguardista de Snow em “La Région Centrale” é particular – e essencialmente inumana. Ela quer subtrair até o limite a dimensão subjetiva da tomada e coloca a câmera num braço robótico, elaborado como um imenso mecanismo maquínico. Todo filme é tomado a partir de iniciativas não aleatórias deste maquinismo. O mecanismo foi construído para realizar tomadas com movimentos bruscos, rente ao chão ou em espiral (travellings para frente e para trás, horizontais, verticais, panoramas circulares), sem participação humana, programados previamente e controlados a distância.
O mais interessante é que este grande dispositivo fílmico que sustenta a câmera em “La Région Centrale” foi instalado na natureza isolada, numa região montanhosa deserta, no Norte do Quebec. Michael Snow com sua pequena equipe, e o imenso dispositivo maquínico robótico, foram colocados por um helicóptero na montanha isolada, o que permitiu à câmera fazer, por si só após programada, os livres movimentos horizontais, verticais e curvos que vemos nos planos montados de “La Région Centrale (são 17 sequências que se sucedem separadas pela imagem de um grande “x” que ocupa periodicamente a tela). As filmagens tomaram cinco dias e o som do filme é composto por ruídos maquínicos, sem falas, originários da manipulação eletrônica do dispositivo.
É esta obra, então, que empresta sua proposta ao quinto segmento de “Imagem e Palavra”. A imagem da máquina filmando em torno de si mesma, e por si mesma (imagem de um “em si” maquínico sem intenção nem memória) tem elaborada camada estilística que é aproveitada por Godard. O puro maquínico, transformado na unidade filme transcorrendo, serve como referência e contraposição à imagem gorda de humanidade e afetos que, até este momento, é figurada em “Imagem e Palavra”.
Logo ao início do quinto segmento menciona-se o fim das espécies, incluindo a humana, e a diferente responsabilidade daqueles que tem mais ou menos recursos no processo de extinção. Mãos que se movem seguem novamente como se quisessem exprimir o pensamento humano no após tudo, através de uma digressão, aparentemente de Blanchot, sobre o tempo e sua inerência no que é sensação. Um grande letreiro, “Hommage à la Catalogne”, faz referência à experiência carnal extrema, nas trincheiras da guerra civil espanhola (1936), de um jovem George Orwell. Uma voz nos diz que, entre o sofrimento que faz o tempo, e a espera que o torna excessivo, “as histórias avançam de modo mais lento do que as ações são finalizadas”. O que abre o tempo à ausência de tempo talvez seja uma forma própria de o referir para além da experiência da ação.
Seguindo a representação ensaística do vazio, para além da negação, o cume amplo da imagem-ação fílmica finalista, sensório-motora, é atacado. A ação humana, na tradição do classicismo cinematográfico, é “engordada” por motivos sucessivos e emoções, que o espectador pesca como num jogo, mas pode ser esvaziada pela desconstrução do afeto na mimesis.
É o que tenta fazer Godard: esta pescaria motivacional da ficção, surge representada numa sequência típica daquilo que Hitchcock chama “MacGuffin”. “MacGuffin” é um conceito, inventado pelo diretor inglês, que sintetiza brilhantemente o vazio da intenção na ação. A explicação sobre o termo é longa, mas ele refere principalmente um “motivo” ficcional frágil e inverossímil que, apesar do vazio, consegue ancorar com intensidade a tensão da trama, tornando-se centro hipnotizador de espectadores.
O “MacGuffin”, citado por Godard em “Imagem e Palavra”, é conhecido e analisado em detalhes por Hitchcock, na longa entrevista que concedeu ao jovem François Truffaut (“Hitchcock/Truffaut: Entrevistas”): trata-se da rocambólica história de uma garrafa de vinho com material atômico que, em “Notorius”/1944, leva Ingrid Bergman e Cary Grant até o Rio de Janeiro. O plano que Godard reproduz em “Imagem e Palavra”, depois da imagem de uma bela e intensa expressão de Bergman, é o “close” na chave que abre a adega onde está escondida a falsa garrafa “MacGuffin-motivo”.
Também aí os afetos são muitos e soltos, avidamente prontos para grudarem, se pendurarem, no primeiro cabide motivo que lhes seja oferecido. Novamente o artista sente incômodo com as emoções gordas do cinema mostrando como podem ser esvaziadas, seja pela centrifugação inumana que resulta da aceleração motivacional da imagem-ação no cinema hitchcockiano, ou naquela da experiência do dispositivo maquínico de Michael Snow. As breves citações, em “Imagem e Palavra”, do dispositivo maquínico de “La Region Centrale”, são ásperas: percorrem o solo do deserto e árido da montanha, antes de avançarem para o infinito do céu. Talvez queiram criar escape para a armadilha do humanismo, ponto caro ao pensamento dominante na filosofia francesa da segunda metade do século XX.
O filme “Imagem e Palavra” termina num último segmento, anunciando a “Arabie Heureuse” (“Arábia Feliz”). Nesta última parte (espécie de sexto segmento), Godard diminui claramente o ritmo de citações fílmicas e engata a narrativa na trama do livro de Albert Cossery, “Une Ambition dans le Déssert”. Destaca sua filosofia de vida. A felicidade é agora, parece nos dizer, e são as delicadezas da civilização árabe que a sustentam. Na ficção que fecha o filme, uma voz “over”, fora de campo, narra fragmentos da trama do livro. “Heurese Árabie” aparece grafado na tela com o frontispício do livro de Alexandre Dumas, “L”Árabie Heurese – souvenirs de voyages em Afrique et en Asie par Hadji-Abd-El-Hamid Bey”.
A “Árabie Heureuse” de Dumas é também uma expressão para designar o sul da região árabe do Golfo, mais fértil do que outras e por isso “heureuse” (feliz). A referência ao autor da trama, Albert Cossery, traz igualmente menção à sua personalidade. Cossery era tido como uma espécie de bon vivant, apreciador da vida no presente e sem consequência. Com esta filosofia, Cossery, frequentou a nata existencialista da intelectualidade francesa no pós-guerra de Paris.
Na realidade, o universo “árabe” sempre foi muito presente para os franceses. Não só a cultura “berbere”, do Norte da África, mas também os árabes do Golfo, nos quais o filme se detém através do país imaginário “Doffa” do romance. Nos últimos anos, a presença árabe adquiriu cores sombrias no imaginário europeu ao se intensificarem os atentados e a crise migratória da guerra civil síria.
A questão da Europa e da União Europeia é um tema recorrente em “Imagem e Palavra”, surgindo em diferentes momentos do filme. A bandeira com fundo negro do ISIS e sua escrita em letras brancas também aparece aqui, embora não componha o horizonte central da parte “Arabie Heureuse”, inspirada em Dumas e Albert Cossery. Existe na narrativa uma defesa da opção política do califado ficcional de “Doffa” (através do personagem de Samanta) por uma civilização sem petróleo, algo que seria singular e positivo na região.
Godard aproveita para realçar a forma singela, sem o ouro negro, que a natureza involuntariamente dotou o imaginário reino de “Doffa”, em meio a outros países mergulhados na cobiça por riqueza e poder. Opção que embute a simplicidade da vida e a fuga do grande capital, sua brutalidade e suas guerras. É uma tentativa de ode, em meio ao horror, à beleza da luz e das cores do céu, do mar e da areia mediterrânea, dos rostos e do toque – belezas acentuadas pelo trabalho livre de coloração digital que manipula a imagem no filme. Um trecho do romance “Salammbô” (1862), de Flaubert, lido pela voz rouca de Godard, nos dá essa ideia ao narrar um exército de Bárbaros, caravana no deserto, avançando sobre uma Carthago nas brumas e clamando o nome da heroína: “Oh Salammbô”, “Oh Salammbô”.
No “livro de imagem”, portanto, dois lados são postos pela palheta vigorosa de Godard, entre a despedida e o silêncio do horror. E, se quisermos “ler” o livro – o “livro do filme” como o título sugere – talvez devêssemos percorrê-lo de fora, como um grande fluxo de mundo imagem. Talvez cheguemos, neste ponto de pura pulsão entre silêncio e horror, próximos de uma inspiração que faz desaparecer a obra no instante mesmo que a afirma. Não seria onde Godard desembarca, quando que se quer no “livro” da Imagem, que traz a si própria como mundo e memória? Forma que se escreve passando, indo ao encontro, mas que desagua numa potência de horror exterior da qual é essência e não se diz. A expressão da personagem clássica da heroína Bécassine, com seu jeito de inocente caipira bretã e dedo indicador levantado, seria paradigma.
É assim que termina o “livro de imagem” de Godard: pelo lado “heureuse”, mas fechando-se em si como fórmula, composto por “páginas” que nos levam a um ponto de saturação e transcendência. Sendo o livro da “imagem” assim integra os limites do “livro-filme”, espécie metafísica também imaginada pelo poeta Stéphane Mallarmé, quando pensou seu livro mítico: um “livro de imagem”, só da Imagem, além do fluxo limítrofe das páginas.
É o que designa título francês (“Le Livre d”Image”) de “Imagem e Palavra”. Em Godard, o livro-limite está carregado pelo peso do mundo, levando nas costas o fardo da atualidade, da política e da representação do poder. Termina numa sequência de dança conhecida da história do cinema: num dos episódios do longa “Le Plaisir”/1952, de Max Ophuls, mostra o momento no qual o que vem da vida e nela pulsa, emerge com a intensidade do dançar e subitamente para, num final brusco e absoluto, em meio ao movimento frenético. Um corpo (Jean Galland) se estatela no chão com a violência da morte. O belo contra-campo de olhar de Gaby Bruyère (a dançarina que acompanhava Galland formando o par na valsa), indo na direção do corpo que deixa o auge da alegria, é a última imagem, aquela que finda, “Imagem e Palavra”.
A intensidade e brutalidade do nada na morte, deslizam pelo tato da imagem no dedo recorrente de Bécassine, que pedindo silêncio atravessa o filme. É antecedida, neste momento, pela imagem inicial de “Cidadão Kane” (Welles, 1941): “No Trespassing”, estampada em primeiro plano na trama wellesiana. O “livro de imagem” de Godard também não consegue escapar nem penetrar, pois fica no de fora – e teríamos de começar por aí, neste ponto cego da escritura do filme que finda numa imagem negra e numa voz sem campo, falando de sua irremediável “mise en abyme”: “lorsque que je me parle à moi-même je parle la parole d”un autre que je me parle à moi-même” (“quando falo a mim mesmo digo a fala de um outro que eu falo a mim mesmo”).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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