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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Juíza e médica: análise interseccional do caso Adriana Colella em SP

Um retrato de como privilégios estruturais moldam quem pode acumular títulos e tempo, enquanto a maioria luta apenas para sobreviver

Juíza e médica: análise interseccional do caso Adriana Colella em SP (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

O caso da juíza do trabalho Adriana de Jesus Pita Colella, recém-promovida no Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região (TRT2), que concluiu a faculdade de Medicina, de carga horária integral, enquanto mantinha suas obrigações na corte, não é apenas uma notícia sobre dedicação pessoal. Ele se configura como um prisma social que, quando analisado sob uma lente interseccional – atravessada pelas questões de raça, território, classe, família e as barreiras que atingem pessoas com deficiência (PCD) e a comunidade trans – revela as profundas desigualdades estruturais que permeiam o acesso, o tempo e a possibilidade de acumulação de capital simbólico e financeiro no Brasil.

Algumas lógicas para pensarmos…

A narrativa de conciliar duas carreiras de alto prestígio e dedicação, como magistratura e medicina, frequentemente é enquadrada pela mídia como um exemplo de superação e mérito individual. No entanto, é fundamental questionar: quem tem o tempo, o recurso e o suporte familiar/estrutural para tal façanha?

A remuneração média bruta da juíza em 2025, de R$ 76,8 mil (líquida de R$ 56 mil), a coloca em um estrato social onde o tempo deixa de ser um fator de privação e passa a ser um recurso negociável.

Olhar da Família e Território: Conciliar jornadas de 8h às 17h (internato) com 11h30 às 18h (TRT) exige uma logística impossível para a vasta maioria da população brasileira. Essa “dupla jornada” só é viável com a terceirização do trabalho de cuidado (filhos, casa, idosos) – um trabalho, em sua maioria, executado por mulheres, muitas vezes negras e de baixa renda, com salários que compõem uma fração da remuneração da magistrada. Onde está o “tempo livre” das mães solo periféricas, cujo território exige horas de deslocamento em transporte público e cujas famílias dependem de seu trabalho integral?

Olhar da Classe e Raça: A possibilidade de dedicar seis anos a um curso integral (Medicina) e manter um cargo de elite (juíza), com alto custo de vida e ausências, aponta para uma reserva de capital que permite a flexibilização do tempo. Para uma pessoa negra e periférica, a necessidade de trabalhar por sobrevivência inviabiliza sequer o acesso ao primeiro curso superior em tempo integral, quanto mais a conciliação com um emprego que exige dedicação exclusiva. O acesso a essas carreiras de elite, majoritariamente brancas, é, por si só, uma barreira racial.

Ao olharmos para os grupos marginalizados, o caso Colella ressalta a brutalidade da exclusão que apresento em vários textos desta coluna, mas vejam:

Pensando nas Pessoas com Deficiência (PCDs), a exigência de uma dupla jornada física e mental extenuante (audiências, atendimentos, estágios em hospitais) é, na prática, uma barreira intransponível para muitas PCDs que demandam adaptações específicas de jornada, acessibilidade ou suporte contínuo para manter sua saúde e produtividade em um único emprego. O modelo de “superprodução” imposto pela juíza reforça uma lógica capacitista de que o corpo deve ser explorado ao máximo.

Para a maioria das pessoas trans, a expectativa de acumulação de dois diplomas de prestígio é quase uma quimera. A transfobia estrutural gera evasão escolar precoce e taxas de desemprego altíssimas, forçando muitas a ingressarem na informalidade ou no trabalho sexual para sobreviver. A prioridade para a maioria das pessoas trans não é conciliar dois empregos de elite, mas sim garantir o direito fundamental ao nome social, usar um banheiro sem constrangimentos, sem faltar ações à dignidade e à permanência no primeiro emprego ou curso superior.

A polêmica no TRT2 não é sobre a competência ou a dedicação da juíza, mas sobre a ética institucional e o choque de horários (11h30–18h no TRT vs. 8h–17h no internato). A aprovação no estágio, com frequência superior a 90%, indica que a magistrada conseguiu cumprir, simultaneamente, duas jornadas que, em teoria, exigem exclusividade e presença física. Eu fiz cursos EAD e um mestrado seguido de um doutorado e quase morri – saí com diploma, diabética e com a visão mais comprometida de quando entrei!

O sistema de promoção por antiguidade (critério de promoção de Colella) acaba por blindar a carreira de questionamentos mais profundos sobre a gestão de tempo e prioridades. No entanto, a questão central permanece:

O acúmulo de capital (diplomas, renda) de uma minoria de elite está sendo custeado pela flexibilização de regras que deveriam garantir o tempo integral e a dedicação exclusiva ao serviço público?

O caso Colella expõe a face da elite brasileira que, com capital e privilégio, consegue comprar tempo, driblar a burocracia e acumular credenciais em uma velocidade inatingível para nós, sobreviventes, e para o resto da sociedade. Para as mulheres negras, trans e PCDs das periferias, a “superação” não é conciliar dois empregos de R$ 56 mil, mas sim sobreviver com um salário mínimo e garantir o sustento da família. A desigualdade, nesse contexto, não se manifesta na falta de esforço individual, mas na impossibilidade estrutural de acesso a esse mesmo tempo e a esses mesmos recursos.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.