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Daniele Barbosa Bezerra

Doutora em Educação (UFC), professora, pesquisadora de gêneros biográficos e memorialísticos, contista e cronista.

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Kaiannes, Evangelinas, Marias, Késsias, Lúcias, Aparecidas (...)

Machismo e a misoginia são ingredientes constantes nesse caldeirão miscigenado que se chama Brasil

Kaianne Bezerra, 35 anos, vítima de feminicídio. (Foto: Reprodução)
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Segundo o Alto Comissariado da ONU, o Brasil é o quinto país no mundo que mais mata suas mulheres, pelo simples fato de serem o que são. O machismo e a misoginia são ingredientes constantes nesse caldeirão miscigenado que se chama Brasil, e quem é mulher sabe das diversas violências sofridas, cotidianamente, no exercício do viver.  

 Em abril desse ano, mas que só foi levado ao conhecimento do público agora, um grupo de estudantes de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), realizou uma masturbação coletiva, apelidada de “punhetaço”, durante uma partida de vôlei feminino em um torneio universitário na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. O despudor para tal gesto obsceno, numa arena esportiva, retrata o que nós, mulheres, passamos muitas vezes nas esferas pública e privada. Depois que essas imagens inacreditáveis foram divulgadas é que a universidade resolveu tomar as tais medidas cabíveis; já a Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, se pronunciou em vídeo nas redes sociais, emitiu nota de repúdio e prometeu agir com o rigor da lei contra os futuros médicos. Todas nós temos muito o que contar sobre violências. Lembro-me de alguns episódios por que passei pelo simples fato de ser o que sou, mulher. Senta que lá vem história.

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 Uma vez, estava na mesa de um barzinho bastante conhecido da minha cidade, o inesquecível Cais Bar, com uma amiga. Um sujeito, já embriagado, se aproximou de nossa mesa e começou a nos importunar. Pedimos a ele que se afastasse e nos deixássemos em paz. O homem aviltado pela firmeza do nosso pedido começou a nos insultar com palavrões, jogou o seu cartão de contato na mesa, para que soubéssemos que ele era uma “otoridade”. Como refutávamos qualquer contato com ele, não satisfeito, apagou o seu cigarro no prato em que estávamos comendo o nosso “pedacinho do céu”. Na hora me levantei no alto da minha baixa estatura, disse-lhe alguns desaforos e chamei os seguranças do local, que colocaram o sujeito repugnante para fora do estabelecimento. Querem mais?

 Outra vez, foi o marceneiro que me deu um cano e nunca fez os meus móveis para minha casa. Ficou com todo o material que eu havia comprado, com bastante sacrifício. Passei um bom tempo, semanalmente, indo à oficina atrás do homem, para que ele cumprisse com o compromisso. Nessas idas, presenciei por várias vezes, ele entregando suas encomendas a outros clientes, quanto a mim, enrolou como pode, até eu levá-lo à justiça, o que também não resolveu, pois o sujeito fechou sua oficina, e nunca mais soubemos do paradeiro do caloteiro.    

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 Com o instalador das cortinas foi um pouco pior. Adentrando a minha casa para por as cortinas, indagou-me se eu era casada e a partir daí começou a importunação, dentro da minha casa. Respondi-lhe que não era da sua conta e que fizesse o serviço o mais rápido possível. Já o coordenador de uma grande escola, em que trabalhei no início de carreira, trancou-me na sala com ele e tentou me agarrar à força. Quando consegui me desvencilhar dele, reportei à diretora da instituição o acontecido, nenhuma providência foi tomada em relação a ele, entretanto quando voltei das férias de julho, estava demitida.  

 A caminho do trabalho, um motoqueiro fazendo uso do corredor central e imaginário da pista arrancou o meu retrovisor, ao passar em alta velocidade, e foi embora. Logo após o episódio, outro motociclista, quando me viu parada no semáforo segurando o retrovisor, num ar debochado e risonho, perguntou-me: _ E aí? Bateu, foi? Pois na cabeça misógina dessa gente quem comete “barbeiragens” no trânsito são as mulheres.  Respondi-lhe com sangue nos olhos, ódio na alma e preocupação por estar atrasada: _Não querido, foi um otário igual a ti que passou por aqui e arrancou!  Óbvio que fiquei receosa da atitude do sujeito após minha resposta grosseira, mas segurei firme a cara de poucos amigos, o que o fez ir embora me xingando de alguma coisa que não ouvi.  

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 Tenho muito mais para relatar, mas paro por aqui. Não pretendo que essa crônica fique tão autocentrada, contudo tenho a certeza que as mulheres que lerem esse texto, se identificarão e lembrarão episódios vivenciados por elas.   

 Essas doses diárias de machismo, só reforçam aquilo que já sabíamos in loco e que as pesquisas sobre violência contra as mulheres trazem em números: o Brasil odeia suas mulheres. A misoginia, cancro social, praticada por homens e também por mulheres estão enraizadas na nossa cultura. Começa com gotículas constantes de violências e termina num oceano de ódio.

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 Infelizmente, no último dia 26/08, o feminicídio bateu à minha porta. Minha prima, Kaianne Bezerra, foi assassinada dentro de sua casa, na litorânea cidade de Aquiraz-Ceará, região metropolitana de Fortaleza. O que inicialmente era considerado um latrocínio, roubo seguido de morte, desnudou-se em feminicídio, quando a polícia civil do estado do Ceará descobriu que o marido havia estado horas antes do crime, com os supostos ladrões e assassinos da jovem Kaianne. Hoje, já se sabe que o viúvo foi protagonista na cena do crime e a investigação, de grande complexidade, está em curso com muito mais a ser revelado, pois os porquês do crime ainda estão sem explicação.

 Ela, como várias mulheres que foram vítimas de violência, brilhava na carreira, conseguindo alçar voos, estabilidade financeira e empoderamento como mulher. O que talvez tenha deixado o seu marido cabisbaixo, enciumado e humilhado. Existia violência em casa? Nada sugere isso, pelo menos nunca foi relatada à família, entretanto o predador estava ao seu lado (há mais de dez anos), à espreita, para dar o bote. Ainda não a sepultamos simbolicamente e, certamente, a paz para vivermos o luto, só será possível quando todos os envolvidos pagarem na justiça pelo que fizeram. No momento é só espera e luta.   

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 Sensível à situação de violência doméstica por que passa as mulheres, e como forma de dar uma maior proteção às vítimas de violência, na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.674, de 2023, que prevê a concessão de auxílio-aluguel a mulheres vítimas de violência doméstica. A norma foi publicada na última sexta feira, dia 15, no Diário Oficial da União.  Oriunda do projeto de lei (PL) 4.875/2020 foi aprovada pelo Senado, mês passado, e inclui o auxílio-aluguel na pauta das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006). O pagamento do auxílio-aluguel deverá ser concedido por um juiz a mulheres afastadas do lar em situação de vulnerabilidade social e econômica.

 Apesar desse passo governamental importante, temos a consciência de que há muito o que se fazer para que o Brasil saia dessa triste posição, pois como bem afirma a nota do Ministério das Mulheres: Romper séculos de uma cultura misógina é uma tarefa constante que exige um olhar atento para todos os tipos de violências de gênero (...)”.  

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