Sara York avatar

Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

164 artigos

HOME > blog

Loucura, manicômios e o contrato racial: uma conversa com Lassana Danfá

Lassana não separa teoria de vida. Para ele, enfrentar manicômios e epistemologias coloniais é trabalhar a história, a cidade, a ciência e a ética

Sara York e o professor e psicólogo Lassana Danfá (Foto: Acervo pessoal)

Saí da mesa sobre loucura onde o professor Lassana Danfá falou com vigor sobre história, corpo e exclusão. Guineense de Guiné-Bissau, no Brasil desde 2009, Lassana é professor visitante e pós-doutor na Universidade Federal de Alagoas. Psicólogo de formação, organiza sua reflexão entre clínica, política e história ­— e insiste: não há como pensar ciência sem pensar poder.

Pergunto a ele o que ainda não superamos nas discussões sobre loucura e manicômio no Brasil. Lassana responde com firmeza: as instituições psiquiátricas nascem e se alimentam de violências coloniais e escravocratas. Desde os primeiros hospitais–hospícios ligados ao Estado imperial, as pessoas internadas foram em grande medida negras, pobres, mulheres violentadas — corpos marcados por uma dupla punição: racial e sexual. Ele lembra que muitos prontuários femininos têm cunho misógino; que a história das internações é também história de estupros e silenciamentos que não são devidamente nomeados nos relatos canônicos.

Superar os manicômios, para ele, exige enfrentar dois contratos que estruturam a instituição social: o contrato racial — uma psiquiatria construída sobre racismo — e o contrato sexual — a opressão das mulheres que é naturalizada e patologizada. Sem esse diagnóstico profundo, programas e reformas serão cosmética: “A gente não vai superar se não resolver as causas que produziram isso”, diz. Lassana amplia a conversa para estudos urbanos e sociologia: como as cidades foram arquitetadas para conter corpos marginais; como o racismo estrutural organiza espaços de vida, trabalho e punição. Ele aponta Du Bois como autor modelo para esse tipo de investigação empírica e urbana — o olhar que cruza habitação, emprego e violência para compreender a dinâmica racial no espaço urbano.

Um ponto crítico da conversa é o modo como a solidariedade muitas vezes se confunde com pena: “Chorar não é o mesmo que solidariedade.” Lassana observa que a compaixão paternalista continua marcando reações em espaços acadêmicos e políticos, o que reproduz desigualdades em vez de enfrentá-las.

Pergunto então sobre quem o influenciou contemporaneamente. Lassana afirma que Frantz Fanon teve impacto decisivo: a leitura de Fanon produz introspecção e retrospecção — um movimento de voltar à infância para entender o presente — e oferece ferramentas para pensar a imbricação entre ciência e política. Ele relembra conceitos fulcrais como a negrofobia (o pavor da diferença racializada) e a definição de racismo de Fanon que é epistemológica, política e moral — colocando em xeque a autoridade moral do Ocidente.

Outro autor que marcou sua trajetória é Cheikh Anta Diop: a obra de Diop reconstrói autoestima ao situar a história africana como parte constitutiva da civilização humana. Para Lassana, Diop o salvou da leitura que reduz a negritude à precariedade: ensinou-o a “auto-inscrever-se”, a criar novas narrativas onde o corpo negro é protagonista e não tropeço histórico.

Por fim, Lassana recupera um conceito de Membe — a “angústia da aniquilação” — para explicar como certos corpos são socialmente produzidos como excedentes, “dejetos” que a ordem social tende a excluir ou aniquilar. Esses conceitos são, para ele, instrumentos cruciais para pensar a clínica, a política e a produção de conhecimento que quer ser humano e transformador.

Lassana não separa teoria de vida. Para ele, enfrentar manicômios e epistemologias coloniais é trabalhar a história, a cidade, a ciência e a ética — é reescrever contratos sociais que normalizaram violência e silenciamento. Foi uma conversa que me lembrou que perguntar por loucura no Brasil é, sempre, perguntar por raça, por gênero, por espaço e por memória.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados