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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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Lula e a diplomacia da contenção

Como o Brasil tenta frear a coerção dos EUA contra a Venezuela e reduzir o risco de uma escalada no Caribe

Lula e Trump (Foto: Ricardo Stuckert)

Sanções, apreensões marítimas e narrativas securitárias empurram a crise EUA–Venezuela para um regime permanente de atrito. Longe da retórica heroica ou da mediação formal, Lula atua como operador de contenção sistêmica, buscando ganhar tempo histórico e impedir que a normalização da coerção por fluxos transforme o Caribe em um novo ponto de erro irreversível do sistema internacional.

O mundo entrou no regime da fricção permanente

O sistema internacional atravessou uma mutação silenciosa. As grandes potências já não precisam declarar guerras para produzir instabilidade, nem derrubar governos para reorganizar regiões inteiras. O conflito contemporâneo deslocou-se para um regime mais denso e mais perigoso, no qual a violência raramente se apresenta como ruptura espetacular. Ela se manifesta como atrito contínuo, acumulado, normalizado. O risco já não nasce de decisões excepcionais, mas do funcionamento regular do próprio sistema.

Nas últimas décadas, sanções econômicas, bloqueios financeiros, interdições logísticas, apreensões seletivas e enquadramentos securitários passaram a ocupar o centro da política internacional. Esses instrumentos não suspendem formalmente a ordem global. Ao contrário, operam dentro dela, sob o vocabulário da legalidade, da técnica e da administração. Apresentam-se como medidas pontuais, mas produzem efeitos estruturais: comprimem o tempo, encurtam margens de manobra e transformam o cotidiano em um espaço permanente de pressão.

O que se alterou não foi apenas o repertório de instrumentos, mas a lógica do conflito. A guerra aberta, paradoxalmente, costuma vir acompanhada de canais claros de comunicação, objetivos explicitados e algum grau de racionalidade estratégica compartilhada. A fricção permanente dissolve esses amortecedores. Ela cria ambientes saturados de pequenos incidentes, gestos ambíguos e pressões graduais, nos quais o erro deixa de ser uma exceção estatística e passa a integrar a própria dinâmica do sistema.

Nesse regime, o perigo central não reside na decisão soberana de escalar, mas na perda progressiva de controle político sobre processos que parecem administráveis. Sanções se acumulam, operações se sobrepõem, narrativas se cristalizam e rotinas de enforcement ganham autonomia. A política passa a correr atrás da técnica. E a técnica, desprovida de horizonte histórico, executa protocolos sem ponderar consequências de longo prazo.

Esse deslocamento ajuda a compreender por que tantas crises contemporâneas parecem, ao mesmo tempo, intermináveis e instáveis. Elas não avançam para a guerra aberta, mas também não retornam à negociação estruturada. Permanecem suspensas em um estado intermediário, no qual cada novo movimento reduz um pouco mais a margem de correção. O sistema internacional entra, assim, em um tempo comprimido, onde decisões aparentemente menores carregam efeitos potencialmente desproporcionais.

É nesse contexto que a noção clássica de vitória perde centralidade. O problema deixa de ser vencer o outro e passa a ser evitar que o acúmulo de fricção produza um colapso não intencional. O campo decisivo da política internacional contemporânea já não é apenas o território, nem a retórica ideológica, mas a gestão do risco sistêmico. Quem consegue conter a fricção ganha tempo. Quem não consegue, acelera o erro.

É a partir desse mundo, organizado menos por confrontos declarados e mais por atritos contínuos, que se deve compreender as tensões no Caribe, a coerção exercida sobre a Venezuela e o papel específico que alguns atores passaram a desempenhar. Antes de falar de líderes, decisões ou episódios, é preciso reconhecer o terreno histórico em que todos estão pisando: um sistema em que o cotidiano se tornou perigoso e onde conter passou a ser mais difícil, e mais decisivo, do que confrontar.

 A coerção por fluxos como método de poder

O regime da fricção permanente opera por um método específico. Ele não se impõe pela ocupação territorial nem pela guerra declarada, mas pelo controle seletivo dos fluxos que sustentam a vida econômica, política e social. Energia, finanças, logística, seguros, crédito, informação e mobilidade tornaram-se alavancas centrais de poder. Quem controla esses fluxos não precisa derrubar governos para condicioná-los. Basta interromper, encarecer ou tornar instável o funcionamento cotidiano.

Essa forma de coerção tem uma vantagem decisiva: ela se apresenta como normalidade. Sanções são descritas como instrumentos legais. Apreensões aparecem como aplicação da lei. Bloqueios financeiros são enquadrados como medidas técnicas. Nada disso exige ruptura institucional, nem mobilização militar explícita. O poder se exerce sem declarar conflito, mas produz efeitos comparáveis aos de um cerco prolongado. A soberania formal permanece, enquanto a soberania material é gradualmente corroída.

O controle por fluxos substitui a tomada do Estado porque opera em camadas. Uma sanção financeira não atinge apenas o governo-alvo, mas redes de comércio, seguros, transporte e investimento. Uma apreensão marítima não bloqueia apenas um navio, mas reconfigura expectativas de risco, encarece fretes, afasta operadores e reorganiza rotas. Uma narrativa securitária não atua apenas no plano simbólico, mas legitima juridicamente a ampliação contínua dessas medidas. O método não é espetacular. É cumulativo.

Nesse arranjo, a coerção se torna difusa e persistente. Não há um único ato decisivo a ser denunciado ou revertido. Há uma sucessão de pequenas interdições que, somadas, produzem um ambiente de escassez administrada. O cotidiano passa a ser governado pela incerteza. Investimentos são adiados, cadeias logísticas se fragmentam, decisões políticas tornam-se reativas. A instabilidade deixa de ser exceção e passa a funcionar como forma de governo indireto.

O Caribe ocupa um lugar sensível nessa arquitetura. Trata-se de um espaço onde fluxos energéticos, rotas marítimas, seguros internacionais e presença militar se sobrepõem em distâncias curtas. Pequenos movimentos produzem efeitos ampliados. A proximidade constante entre forças, embarcações civis e operações de enforcement reduz drasticamente a margem de erro. A coerção por fluxos, nesse contexto, não apenas pressiona economias. Ela densifica o ambiente estratégico e transforma o cotidiano em potencial gatilho de crise.

O aspecto mais perigoso desse método é sua aparência de controle. Cada medida isolada parece administrável, justificável, reversível. O problema surge do acúmulo. À medida que fluxos vitais são progressivamente comprimidos, a capacidade política de absorver choques diminui. O sistema passa a operar no limite, com tolerância cada vez menor a falhas técnicas, decisões mal calibradas ou incidentes imprevistos. A coerção, pensada para evitar confrontos diretos, passa a produzir exatamente o tipo de ambiente em que o confronto se torna mais provável.

É por isso que a coerção por fluxos não pode ser lida apenas como política externa ou instrumento jurídico. Ela constitui uma forma contemporânea de poder, adequada a um mundo em que a guerra aberta é custosa demais, mas a submissão indireta ainda é possível. Compreender esse método é essencial para entender por que determinadas regiões se tornam cronicamente instáveis e por que, em certos contextos, conter a pressão passa a ser mais estratégico do que ampliá-la.

Venezuela: o laboratório do limite

A Venezuela ocupa um lugar singular no regime contemporâneo de coerção por fluxos. Não por ser a única submetida a esse método, mas por concentrar, de forma extrema e prolongada, quase todos os seus dispositivos. Ao longo de anos, sanções financeiras, bloqueios comerciais, restrições logísticas, isolamento creditício e narrativas securitárias foram sendo empilhados até produzir um ambiente de compressão contínua. O país converteu-se em um laboratório do limite, onde a coerção deixa de ser instrumento de pressão e passa a estruturar o próprio cotidiano.

Nesse contexto, cada medida adicional produz efeitos desproporcionais. A economia já opera com margens reduzidas, a política funciona sob estresse permanente e a capacidade institucional de absorver choques é progressivamente corroída. A coerção não se manifesta como um golpe súbito, mas como desgaste prolongado. O resultado não é a implosão imediata, mas a normalização da instabilidade. A exceção torna-se rotina. A crise deixa de ser evento e passa a ser condição.

As recentes apreensões marítimas, somadas à intensificação das sanções, ilustram com clareza esse ponto de saturação. Elas não bloqueiam apenas cargas específicas. Reorganizam expectativas de risco em toda a cadeia logística, afetam seguros, elevam custos de transporte e retraem operadores internacionais. O impacto real não está apenas no que é apreendido, mas no que deixa de circular. O fluxo interrompido gera um efeito cascata que se espalha muito além do alvo imediato.

A esse cerco material soma-se uma camada narrativa decisiva. A recorrência de enquadramentos que associam a Venezuela a crime organizado, terrorismo ou ameaça transnacional não atua apenas no plano discursivo. Ela cria o ambiente jurídico e político necessário para ampliar indefinidamente a coerção. Ao deslocar o conflito para o campo da segurança, essas narrativas reduzem o espaço da diplomacia e tornam qualquer gesto de distensão politicamente custoso para quem exerce a pressão.

O perigo central desse arranjo não está na intenção declarada, mas na dinâmica que ele produz. À medida que a coerção se intensifica, a margem para decisões políticas racionais se estreita. O sistema passa a operar em estado de saturação, no qual pequenos incidentes podem adquirir peso estratégico desmedido. Um erro técnico, uma interceptação mal calculada ou uma decisão burocrática automatizada pode desencadear reações em cadeia difíceis de conter. A escalada deixa de ser escolha consciente e passa a ser risco estrutural.

É nesse ponto que a Venezuela deixa de ser apenas um caso nacional e se transforma em problema regional. O Caribe, com sua densidade de rotas, proximidade militar e circulação constante de interesses comerciais e estratégicos, amplifica esse risco. A coerção prolongada não estabiliza o entorno. Ela eletrifica o ambiente. O que se observa não é a pacificação gradual, mas a acumulação silenciosa de tensões que escapam ao controle político.

Compreender a Venezuela como laboratório do limite é reconhecer que o problema em jogo não se restringe a um governo específico ou a uma disputa bilateral. O que está sendo testado ali é até onde um sistema internacional pode empurrar a coerção indireta sem produzir um erro irreversível. É a partir dessa leitura que o papel de certos atores ganha relevância histórica. Não como solucionadores mágicos, mas como forças capazes de intervir no ponto mais difícil do processo: o momento em que conter se torna mais urgente do que pressionar.

Lula e a diplomacia da contenção

É nesse cenário de fricção acumulada, coerção difusa e risco estrutural de erro que o papel de Lula se torna inteligível. Não como mediador formal, nem como líder confrontacional, mas como operador de contenção sistêmica. Sua atuação não se orienta pela lógica da vitória, tampouco pela ilusão de neutralidade. Ela responde a uma leitura madura do tempo histórico, na qual o desafio central já não é resolver conflitos de forma definitiva, mas impedir que eles ultrapassem o limiar do irreversível.

A diplomacia da contenção parte de um princípio simples e exigente: quando a pressão se torna método e a instabilidade vira rotina, a primeira tarefa política é reduzir o risco. Isso implica preservar canais, evitar gestos espetaculares, modular a linguagem e recusar tanto a escalada retórica quanto o alinhamento automático. Lula atua nesse intervalo estreito, onde quase nada é visível, mas onde cada movimento tem peso desproporcional.

Na prática, isso se expressa por uma combinação rara de ações. De um lado, a reconstrução deliberada do diálogo com Washington, sem submissão e sem confronto aberto, restabelecendo o Brasil como interlocutor confiável em um ambiente internacional cada vez mais polarizado. De outro, a manutenção de canais diretos com Caracas, mesmo sob forte pressão externa, reconhecendo que o isolamento absoluto não produz estabilidade, apenas empurra o sistema para o limite. Essa dupla movimentação não resolve o conflito, mas impede seu fechamento em lógica binária.

A força dessa estratégia está justamente no que ela evita. Lula não transforma a Venezuela em bandeira ideológica, nem a utiliza como palco para afirmações grandiloquentes. Tampouco adota o silêncio cúmplice que naturaliza a coerção prolongada. Sua atuação se dá no plano mais difícil da política internacional: o da gestão do tempo. Ganhar tempo, nesse contexto, não é adiar decisões, mas ampliar a margem para que elas ainda possam ser tomadas politicamente, e não por inércia técnica ou automatismo institucional.

Essa postura exige maturidade estratégica. Em um mundo saturado de narrativas instantâneas e gestos performáticos, conter parece fraco. Na realidade, é o contrário. A contenção é custosa porque não gera dividendos imediatos, não produz manchetes fáceis e não se traduz em símbolos claros. Seu sucesso se mede pelo que não acontece: a escalada evitada, o incidente neutralizado, a crise que não se materializa. É um tipo de poder que opera pela ausência do desastre, não pela exibição da força.

Lula compreende que, no regime da coerção por fluxos, cada escalada adicional reduz as opções futuras. Ao recusar movimentos irreversíveis, ele preserva espaço para rearranjos que ainda não existem, mas que só podem emergir se o sistema não colapsar antes. Sua diplomacia não promete soluções rápidas. Ela oferece algo mais raro no mundo contemporâneo: tempo histórico.

É por isso que seu papel não pode ser avaliado pelos critérios tradicionais da mediação ou do protagonismo espetacular. Lula atua como estabilizador em um sistema que perdeu amortecedores. Sua relevância não está em liderar blocos ou impor agendas, mas em sustentar o difícil equilíbrio entre pressão e contenção, evitando que a fricção permanente se transforme em ruptura. Nesse ponto, sua liderança se afirma não pela capacidade de decidir o rumo do conflito, mas pela habilidade de impedir que ele decida sozinho o rumo do mundo.

O tempo histórico como campo de disputa

O conflito central do nosso tempo já não se organiza apenas em torno de territórios, recursos ou alianças formais. Ele se deslocou para uma dimensão mais sutil e decisiva: a disputa pelo tempo histórico. Em um sistema internacional marcado pela fricção permanente, ganhar tempo deixou de ser um expediente tático e passou a ser uma estratégia de sobrevivência. O futuro não está bloqueado por ausência de projetos, mas pela aceleração contínua dos riscos.

A coerção por fluxos, ao comprimir margens de decisão e saturar o cotidiano com instabilidade, reduz drasticamente a capacidade dos Estados de pensar além do imediato. Governos passam a administrar crises em série, sociedades se acostumam à exceção e a política perde horizonte. O tempo deixa de ser espaço de construção e se converte em contagem regressiva. Nesse ambiente, cada erro pesa mais, cada incidente carrega consequências ampliadas e cada escalada fecha portas que talvez nunca se reabram.

É exatamente nesse ponto que a contenção ganha dimensão histórica. Conter não significa conservar o presente, mas impedir que o futuro seja cancelado por antecipação. Ao reduzir o ritmo da escalada, preservar canais e recusar decisões irreversíveis, abre-se espaço para que contradições ainda encontrem saídas políticas. O tempo recuperado não é neutro. Ele pode ser usado para reorganizar economias, redesenhar alianças, criar alternativas materiais e reconstruir algum grau de previsibilidade coletiva.

A atuação de Lula se insere nessa lógica mais ampla. Sua liderança não se afirma pela promessa de uma ordem nova pronta para substituir a velha, mas pela capacidade de impedir que a ordem existente se degrade até o ponto do colapso. Em um mundo no qual potências recorrem cada vez mais à coerção indireta e à gestão do risco como forma de governo, essa postura representa uma inflexão rara. Ela recoloca a política como instância capaz de intervir no tempo, e não apenas reagir a ele.

Isso ajuda a explicar por que o soft power exercido por Lula hoje não se confunde com carisma ou prestígio simbólico. Ele deriva de algo mais concreto: a confiança de que o Brasil atua para estabilizar, não para incendiar; para ampliar margens, não para fechá-las; para evitar o erro histórico, não para explorá-lo. Essa percepção organiza expectativas, reduz desconfianças e cria espaço para cooperação em um ambiente internacional cada vez mais avesso à confiança.

O que está em jogo, portanto, não é apenas a relação entre Estados Unidos e Venezuela, nem o equilíbrio no Caribe. O que se disputa é se o sistema internacional ainda consegue produzir tempo suficiente para reorganizar suas próprias contradições. Em um mundo que se move perigosamente rápido, conter passou a ser uma forma superior de ação política.

A questão decisiva que permanece aberta não é quem vencerá os conflitos em curso, mas se haverá tempo para que eles deixem de ser administrados pelo acúmulo de fricção e voltem a ser tratados como problemas políticos. Nesse intervalo estreito entre a pressão contínua e o colapso irreversível, a história não avança por gestos espetaculares, mas pela capacidade de impedir que o pior aconteça cedo demais. É ali, nesse espaço quase invisível, que se define o verdadeiro campo de disputa do nosso tempo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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