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Luciano Elia

Psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, professor titular de Psicanálise da UERJ, do Programa de Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas

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Magno Machado Dias

Quando alguém se coloca no laço social de forma desejante em seus atos, sua morte não coincide com a passagem à nulidade simbólica

Psicanalista Magno Machado Dias, ou MDMAGNO (Foto: Reprodução/X)

No último dia 4 de agosto morreu, aos 87 anos, Magno Machado Dias, ou MDMAGNO, como ele mesmo cunhou seu nome próprio no espaço público. Desde que sua morte chegou ao meu conhecimento, experimento o desejo de dirigir à comunidade de psicanalistas, não exclusivamente aos lacanianos, como eu, algumas palavras sobre este psicanalista tão singular.

Essas palavras começam por situar minha posição, a que tomei em meu percurso, em relação ao Magno, sem o que minha enunciação aqui permaneceria vaga e imprecisa. Por que quero dirigir essas palavras à comunidade psicanalítica? Preciso dar as razões desse desejo, pois nunca ouvi de Magno uma só palavra de transmissão do ensino de Lacan, tendo-me limitado a ler pouquíssimos escritos seus em todo o meu percurso de formação, que é permanente mas não começou ontem. Na verdade, sendo eu da geração que sucedeu imediatamente a dele, que é a primeira geração de psicanalistas lacanianos no Brasil, e pertencendo eu portanto à segunda, era de se esperar que pelo menos eu o tivesse conhecido pessoalmente. E sim, eu o conheci pessoalmente, mas nunca na situação de transmissão, e sim como alguém que não raro estava sentado em mesa próxima à dele em algum dos restaurantes de uma famosa esquina do Baixo Leblon, que reunia em três dos seus quatro vértices restaurantes notáveis como o Real Astoria, a Pizzaria Guanabara e mais frequentemente o Diagonal – cujo nome era “Porto Mar” mas todo mundo o conhecia por este codinome porque ele ficava em diagonal ao tradicional “RA” – o Real Astoria, fechado nos anos 90. O Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – a primeira instituição lacaniana do Brasil, fundado em 1975, quando eu cursava o segundo ano de Psicologia na PUC-Rio, ficava ali em frente ao Diagonal, e ele ia quase sempre jantar ali, com sua companheira e alguns amigos, após o seminário que sustentava do outro lado da rua. Eu o via, ouvia sua voz conversando, sempre de preto, mas algo me fazia não ir escutá-lo falar de Lacan, não sem ficar intrigado com isso, pois muitos colegas de geração, ainda que um pouco mais velhos que eu (sou o caçula dessa geração) seguiam seu seminário, analisavam-se com ele e/ou eram membros do Colégio Freudiano.

A primeira geração de psicanalistas lacanianos do Brasil tinha Magno, do Rio, Betty Milan, de São Paulo, mas que compartilhou com Magno, em Paris, a sala de espera de Lacan por algum tempo e fundou com ele o Colégio Freudiano do Rio. Mas tinha também um punhado de psicanalistas nordestinos, alguns exilados políticos da ditadura militar brasileira e que, com a anistia, em 1979, retornaram do exílio e fixaram-se no Rio e outros que escolheram o auto-exílio pelas mesmas razões políticas, mas através do qual muitos encontraram em Paris Lacan e seu ensino, alguns tendo voltado em anos anteriores. As transferências que marcaram meu percurso de formação foram com esses psicanalistas.

Além de Magno, Betty Milan e estes nordestinos (“entre os quais” um canadense), havia, nesta primeira geração de lacanianos, argentinos radicados no Rio e em São Paulo expulsos de seu país pela perseguição política de Videla, a partir de 1976. Indiscutivelmente, contudo, foi Magno que fez o ato de inaugurar institucionalmente o ensino de Lacan no Rio e no Brasil, com a fundação, em 1975, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 4 anos antes da anistia. O epíteto “freudiano” associado a associações psicanalíticas que jamais se denominariam como “sociedades” foi também inaugurado por ele. No mesmo ano de 1975 fundava-se, em Recife, o CEF – Centro de Estudos Freudianos, nome que traz essa mesma marca, ainda que menos diretamente.

Não é pouco o que ele fez. Abriu caminhos, assentou trilhos para que se iniciasse uma transmissão contínua e consequente da psicanálise lacaniana no Brasil. Seja qual for a posição que se tenha em relação ao seu modo de ler e transmitir Lacan, seja qual for a posição que se tenha em relação ao seu modo de conduzir a sua práxis clínica, o ato inaugural é seu e somos todos, como lacanianos, tributários deste ato. Espantou-me, assim, por toda esta semana, o silêncio quase absoluto que se verificou na comunidade psicanalítica sobre sua morte.

Quero narrar um episódio da trajetória de Magno que, este, eu testemunhei, e não em decorrência de algum laço transferencial com ele, de qualquer modalidade que fosse. Um episódio que se conecta inteiramente com a questão, bastante atual, da colonização/decolonialidade na psicanálise. Se o início desta história é 1975, dez anos depois, em 1985, o “Campo Freudiano no Brasil” já se encontrava bem mais vertebrado, graças, inclusive, ao que se abrira antes. Esta expressão, aliás, já traz uma marca colonial, pois é da lavra de Jacques Alain-Miller, genro de Lacan, morto neste ínterim, em 1981, que se coloca em posição de herdeiro “legítimo” do ensino de Lacan, como se um ensino, um pensamento, um discurso, pudesse ter, como as propriedades privadas, herdeiros legítimos. Miller, bastante interessado no Brasil, não era naquele momento alguém com quem os psicanalistas brasileiros da tal primeira geração deixassem de manter relações e intercâmbios. O próprio Magno tinha com ele essas relações, como bem atesta o fato de que ele foi o autor da “versão brasileira” de dois seminários de Lacan – O Livro 11 (Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise), de 1979, e o Livro 20 (Mais, ainda), de 1982. Do mesmo modo, e neste mesmo momento, a Letra Freudiana, fundada em 1981 (ano da morte de Lacan) também no Rio de Janeiro, teve em seu fundador – um argentino do grupo de exilados políticos da ditadura argentina – um representante da Escola da Causa Freudiana, fundada por Lacan depois de ter dissolvido a Escola Freudiana de Paris, meses antes de sua morte, então assumida por Miller. Pouco tempo depois, a Letra se desligou do movimento milleriano. Existia também algo denominado “A Causa Freudiana do Brasil”, cujo líder era um psicanalista de São Paulo, seguidor de Miller.

Psicanalistas brasileiros e argentinos radicados no Brasil, duas instituições fortes por eles fundadas e, em meio a eles, o Campo Freudiano e a Causa Freudiana “do Brasil”, de direção francesa. Decidiu-se, então, realizar no Rio um grande Congresso Lacaniano, de forte impacto, que efetivamente se realizou em outubro de 1985 no Copacabana Palace, mesmo cenário onde, 7 anos antes, em 1978, uma outra instituição – o IBRAPSI (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições) organizara e ao mesmo tempo se consolidara no e por este Congresso, que contou com “estrelas” internacionais de um campo mais marcado pela crítica político-institucional do que pelo ensino de Lacan. A ideia era fazer algo de envergadura semelhante, mas desta vez tendo a psicanálise lacaniana como tema-eixo.

A empreitada, inicialmente conduzida “em conjunto” pelos brasileiros/argentinos e pelos franceses da Causa e do Campo, mas tendo em Magno e no Colégio Freudiano a dianteira da proposta, foi logo revelando sua face conflitual, pois, como é de se esperar, os franceses começaram a mostrar que sua intenção era comandar as operações, sempre contando com a “colaboração” dos latino-americanos. Ao perceber essas manobras, Magno não teve dúvida: rompeu com os franceses que queriam colonizar o Congresso e decidiu realizá-lo sem eles, proclamando que era absolutamente necessário afirmar as marcas de brasilidade da psicanálise. O Congresso se realizou nesta perspectiva: assumiu a banana como significante-símbolo do Brasil, e levou a Escola de Samba Beija Flor e seu carnavalesco Joãozinho Trinta para a proa do Congresso.

A banana se constituiu como o significante político do Congresso. De origem asiática, a fruta foi trazida para a América Central e do Sul na época das invasões colonizadores portugueses e espanhóis a que chama de “descobrimento”. No Congresso de 1985 este significante, como tal, logo se tornou polissêmico: fruta expressiva da cultura brasileira, símbolo fálico e, por extensão, o objeto referente do gesto simbólico de “dar uma banana” para os colonizadores franceses, como assinalou na época um ilustre integrante da intelectualidade brasileira e ativo participante do grande Congresso.

Em 1985, portanto, a psicanálise lacaniana tomou a questão colonial pelo chifre, voltou-se para marcas brasileiras como a banana e o samba, entre outras, antecipando-se ao que hoje, 40 anos depois, finalmente tornou-se uma ampla questão política, epistemológica, de pesquisa e de ato, para alguns psicanalistas de ponta que integram a nossa comunidade lacaniana crítica, a ser cada vez mais ampliada.

Este ato de Magno não deixou de articular-se com outras questões políticas atuais, como a luta antirracista. Como se sabe, Lélia González, a grande socióloga e feminista negra, pioneira em muitas lutas nesses campos e referência para gerações seguintes, estabeleceu importantes e estreitos laços, inclusive transferenciais, com Magno. Esta outra dimensão, presente naquele momento, em 1985, é magnificamente bem relatada em um livro recentemente lançado, de autoria de três colegas e amigos psicanalistas, que nos trazem “de quebra” uma importante distinção entre herdeiros e filiados.

Assim, não é a identificação com as ideias de Magno, menos ainda com seu modo de conduzir a experiência psicanalítica, que dão a esta homenagem o seu fundamento e peso. Os trilhos abertos por ele permitiram que Lacan chegasse a nós, e outros caminhos e percursos se traçaram a partir deles, inclusive uma decidida oposição, há exatos 40 anos, aos movimentos colonizadores dos psicanalistas que se crêem herdeiros legítimos da propriedade privada lacaniana.
Quando alguém se coloca no laço social de forma desejante em seus atos, sua morte não coincide com a passagem à nulidade simbólica. Que o ato inaugural de Magno, ao trazer o ensino de Lacan ao Brasil, e suas decididas marcas de brasilidade e autoria, nos ensejem a nos tornarmos mais herdeiros – plurais e nunca “os legítimos” – do que filiados-colonizados de uma psicanálise forte e subversiva que, com nossas marcas, podemos fazer existir em nosso país e em nosso continente.

  1. No espetáculo teatral Veias abertas 60 30 15 seg, com texto de autoria de Pedro Kosovski e Carolina Lavigne, direção de Marco André Nunes e realização da Aquela Cia. de Teatro, cuja temporada no Rio terminou ontem, 10/8, no Teatro SESC Copacabana, recebemos uma fortíssima transmissão interpretativa do episódio conhecido como Masacre de las bananeras, ocorrido em 6 de dezembro de 1928, no qual o exército colombiano, submetido ao governo americano, que exigia que o governo colombiano de Miguel Mendez “protegesse os interesses da empresa United Fruit Company”, exterminou um enorme número de trabalhadores que entraram em greve por melhores condições de trabalho, que realizavam em regime de semi-escravidão. Aqui também a banana é, sob outro aspecto, protagonista da colonização e da opressão dos povos latino-americanos. E Torquato Neto, no último verso da letra de Marginália II, que tem como estrebilho Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo..., proclama: Oh yes, nós temos banana até prá dar e vender!
  2. Bruno Siniscalchi, Luciano Dias e Natasha Helsinger - É de raça que estamos falando – Tornar-se herdeiro da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro, Viveiros de Castro Editora, 2024.

[N. do A.] - Neste texto optamos por não dar os nomes próprios das pessoas mencionadas, exceto quando obras são citadas, como no caso das duas notas acima.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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