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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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Medo

Pela primeira vez, neste processo eleitoral, senti medo. Medo por ver, tão de perto, aquilo em que se transformou parte significativa da sociedade brasileira. Vingativa, sedenta de sangue, ignorante, embrutecida, sádica, intolerante, odienta

Medo (Foto: Gustavo Lima - ABR)
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Num chuvoso final de tarde de domingo, fui pegar meu filho na festa de um colega. Lá chegando, conheci a mãe, muito simpática, errei seu nome involuntariamente, o nome que recebi no telefone celular estava errado. Nada grave. Depois de uns minutos sem sinal do moleque, a simpática senhora sugere:
 
- Entra lá, para cumprimentar o pai do X!
 
“Lá” era um pequeno salão de festas, com algumas mesas e cadeiras e uma cozinha onde os pequenos convidados podiam se servir de refrigerantes e salgadinhos. Numa das mesas, o pai do amigo conversava com um homem. Fui até lá, me apresentei, o pai do amigo, simpático como a mãe, retribuiu o cumprimento, me pediu para sentar na cadeira que restava vazia enquanto pegava mais uma cerveja gelada e um copo.
 
Ele volta para a mesa, abre a latinha, enche o meu copo e faz o brinde:
 
- Ao Bolsonaro, no primeiro turno!
 
Num primeiro momento, pensei que fosse um chiste, uma brincadeira, tanto mais que o brinde foi proposto com uma quase gargalhada. Depois do susto inicial, percebi que não era piada coisíssima nenhuma. Ainda bestificado, vai saber lá o porquê do espanto diante do descalabro em que vivemos, pergunto ingenuamente:
 
- É sério isso? Vocês são eleitores do Bolsonaro?
 
Aparentemente mais bestificados do que eu, sem compreender a pergunta sem sentido, os dois respondem com outra pergunta:
 
- Claro! Só ele para dar um jeito “nisso aí”.
 
Então, o homem que acompanhava o pai do aniversariante me exibe orgulhosamente a imagem do candidato da extrema-direita estampada na camiseta branca, imagem que eu não havia visto porque seus braços estavam, até aquele momento, cruzados. Devolvem-me a pergunta:
 
- E você, não?
 
- Não, eu não.
 
A partir de então, o papo se desenrolou entre A e B, estando C – no caso, eu mesmo – voluntariamente excluído. O simpático anfitrião ainda me comentou sobre a chuva, perguntou se morávamos perto. O meu constrangimento não tinha volta, a cerveja desceu quadrada, apesar de ter sido servida uma Skol (“desce redondo” uma ova!). Falou-se, nos breves minutos em que ainda permaneci no salão, esperando que meu filho tomasse o guaraná e devorasse uma coxinha de galinha, sobre os “arruaceiros” acampados perto da Polícia Federal em Curitiba, onde permanece preso o Lula, e que infelizmente nada podia ser feito para tirá-los dali. Pronto, eis o “isso aí” que precisam “dar um jeito”. Agradeci a hospitalidade e desejei a ambos “homens de bem”, boa sorte – sarcasmo, senhores, sarcasmo.
 
Já em casa, fiquei pensando sobre o meu constrangimento naquela situação, afinal, não deveria estar constrangido por não votar na extrema-direita, muito antes pelo contrário. O constrangimento deveria partir, isso sim, de quem vestia a camisa – literal e simbolicamente – do representante de ideias e ideais que vão de encontro a tudo o que a recente história da humanidade nos deveria ter ensinado. Então, entendi a inversão de sentimentos.
 
A expressão corporal e facial do homem sentado ao meu lado na festinha de criança, seu discurso carregado de uma entonação intimidadora e violenta, o olhar desafiador e ameaçador que diz “você vai ver o que vai acontecer quando nós chegarmos ao poder” deixam claro que, legitimado por um representante político que se utiliza do espaço público para destilar ódio e intolerância, não há mais constrangimento em se assumir como representante de um exército que vai salvar o país do caos moral. Doa a quem doer, fisicamente.
 
Esse pessoal está, para usar uma expressão da moda, “empoderado”. Permaneciam, até pouco tempo atrás, relegados aos subterrâneos putrefatos das redes sociais, dos grupos fechados de WhatsApp e Facebook. Desavergonhados, abandonaram o mundo virtual, constrangem quem ousa contra-argumentar, quem os questiona, quem lhes pergunta curiosamente sobre o programa de governo de seu candidato, tomados por uma raiva quase incontida e pronta para explodir com um hipotético resultado favorável das urnas, aí sim raiva incontrolável. Partem para o confronto físico, batem, machucam, como milícias paramilitares. Imaginem, por curiosidade mórbida, essa galera autorizada pelo chefe do Poder Executivo a agir em nome de Deus, da Família e da Pátria. Brasil Über Alles, dizem eles por aí.
 
Pela primeira vez, neste processo eleitoral, senti medo. Medo por ver, tão de perto, aquilo em que se transformou parte significativa da sociedade brasileira. Vingativa, sedenta de sangue, ignorante, embrutecida, sádica, intolerante, odienta. Há muito não me sentia tão inseguro, desprotegido, ameaçado de perder minhas liberdades individuais, de ver a Constituição Federal rasgada. Atavicamente, fui teletransportado para a Ucrânia nos finais do século XIX e me vi correndo dos cossacos ávidos por mais um pogrom, por mais um massacre contra os judeus. Ontem, judeus. Hoje, negros, gays, mulheres, nordestinos, petistas, seres pensantes de maneira geral. Ah, e judeus também, por que não?
 
Uma vez rachado o ovo da serpente, o futuro é imprevisível.
 
Só mesmo chamando o Chapolin Colorado.

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