Meia sola
É como um hospital lotado, a diferença é que a fila anda e os pacientes saem curados
A porta acanhada abre de segunda a sábado e pouco antes das nove já tem fila. A gente do bairro, de celular na mão e olhar curioso, pede para escanear documento, anexar foto, enviar certidão, pagar boleto; também precisa de ajuda para baixar aplicativo, mandar e-mail, imprimir.
É a inclusão digital de verdade, em média a cinco reais por cabeça, quase sempre no Pix.
Já entrei lá muitas vezes, por necessidade e por curiosidade. Junto ao serviço de traduzir a informática para uma geração que pensava e ainda pensa de outro jeito, a loja também dá jeito em computadores, impressoras, celulares.
Funcionários dão sobrevida ao que talvez fosse trocado sem necessidade. Agem como cirurgiões num pronto-socorro e quase todos os pacientes sobrevivem.
Fui também à página da loja na internet. Maria Claudia, Erivelton e Jurandir comentaram:
“O preço é justo e aceita cartão”.
“Virei cliente”.
“A impressora voltou a funcionar como nova”.
“Estamos aqui para resolver”. Respondeu o gerente.
Como não admirar?
Consertar em vez de comprar é o lema aqui no bairro. Talvez pela concorrência dos shoppings e do comércio pela internet, as lojas de rua que vendem roupas, sapatos e presentes tenham desaparecido. Já as que consertam, seguem vigorosas.
O homem grisalho e de óculos grandes encaderna publicações preciosas. Páginas coladas uma a uma. Serviço meticuloso que ressuscita livros de arte, de fotografia, de psicologia. Um diário, ainda com vestígios da capa verde, é a última encomenda.
Marcio, um garçom apaixonado por imagens, sabe fazer e restaurar retratos. O desafio dele veio num porta-retrato de jacarandá. A menina de olhar profundo e cabeleira castanha morreu há cerca de 50 anos e a foto manchada de café e rasgada em cima e em baixo é de 1922. Marcio fez a foto da foto, colou um papel por trás e acomodou na moldura. Passou um lustra-móveis e entregou aos bisnetos.
Aqui na Vila já percebi que não temos sapatarias; sapateiros são vários. Muitos e bons. Arrumam salto, pintam, engraxam. Reparam bolsas, malas, cintos, colam meia sola.
Janice tem os pés grandes e não encontra sapatos bonitos do seu tamanho. Deixou de sofrer depois de frequentar a sapataria do Emídio. As três sandálias e a bota, todas já batidas, agora estão tinindo.
Não é só pela utilidade ou pela economia que a gente conserva o ferro de passar, o liquidificador, a panela de pressão. Panela de pressão, comprada numa liquidação. Aquela do segundo casamento, capaz de derreter a mandioca e que num domingo inesquecível queimou o feijão e empesteou a casa por três dias.
Objetos, eletrodomésticos, móveis têm sua história e a gente convive com eles. Meses, anos, vidas.
Por que não cuidar, renovar, em vez de comprar um novo, sem memória?
De volta à panela de pressão. A borracha foi trocada e aquela parte de cima, que apita, também. Anacleto cobrou quarenta e oito reais com garantia de seis meses. Na mesma loja funciona um chaveiro e uma banca do jogo do bicho. No sorteio da manhã deu coelho.
A sorte tem conserto? Gisele atende dezenas de clientes e acha que sim, “a sorte está com a pessoa e não com o bicho”.
Quem duvida que o dono do jipão inglês é um sujeito de sorte? Ele vem de longe em sua joia reluzente porque só confia naquela oficina, que também cuida com carinho de Opalas, Fuscas e Aero Willys.
A oficina mecânica é vizinha de Hermínia, que chegou ao bairro fazendo vestidos pra festa; hoje conserta todo tipo de roupa. Alarga e aperta. Alonga e encurta. Pra dar conta dos pedidos, contratou mais duas ajudantes. É a força da economia popular.
São três da tarde e o porteiro me avisa que Robinson subiu. Ele pousa a maleta de metal no chão da área de serviço, aceita um café quente e começa trabalhar. Primeiro, retira o filtro da lavadora de roupas, analisa, encaixa e desencaixa. Então, troca a mangueira e a válvula. Quarenta minutos e duzentos e vinte reais depois, ele me avisa: “É botar o sabão e estender no varal”.
Chegou a vez do sol de inverno trabalhar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

