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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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Meninas superpoderosas

No episódio “The Sponge” (“A esponja”), a protagonista Elaine sabe que um anticoncepcional conhecido como “esponja” não seria mais vendido. Diz a um rapaz que não pode “desperdiçar duas esponjas” com o mesmo cara. A desinformação está a serviço de um poder ancorado numa visão de mundo religiosa, patriarcal e machista. Fragilidade e virilidade, azul e rosa, submissão e empoderamento. Elaine ou Damares?

Meninas superpoderosas (Foto: Dir.: Wilson Dias - ABR)
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No dia 07 de dezembro de 1995, foi ao ar o episódio “The Sponge” (“A esponja”) de um dos melhores seriados de todos os tempos, “Seinfeld”. Nele, a única protagonista mulher, Elaine, fica sabendo que seu anticoncepcional favorito, conhecido como “esponja”, seria retirado do mercado. Esta notícia devastadora a obriga a percorrer dezenas de quarteirões até encontrar uma farmácia que dispunha de uma última caixa, com sessenta unidades. Elaine, então, pede três e, antes que o farmacêutico desse as costas, ela diz em sequência, para espanto horrorizado do senhorzinho, “dê-me dez... não, vinte... não, acho que vinte e cinco vai ser suficiente ... dê-me a caixa inteira que eu dou o fora daqui”.  
 
Bem resolvida com a própria sexualidade, empoderada, segura de si, independente, senhora do destino, dona do próprio nariz, “master of her domain”, egoísta mesmo, desafiadora dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres, Elaine passa a reavaliar se os parceiros com quem sai são dignos do uso da “esponja” porque quer evitar a todo custo o desperdício do precioso bem. O pretendente deveria convencê-la, como vemos no diálogo a seguir:
 
- Então você acha que é digno da “esponja”.
- Sim, acho. Sou mais do que digno.
- Explica o seu caso, novamente.
- Bom, nós já saímos várias vezes. Nós temos uma boa química. Eu sou dono de uma firma de distribuição de eletrônicos que é bastante rentável. Eu me alimento bem e faço exercícios, e meus exames de sangue são imaculados. E, se posso ser franco, eu sou bom naquilo...
- E você vai fazer algo a respeito dessas costeletas?
- Sim, eu te falei que vou cortar as costeletas.
- O banheiro do seu apartamento está limpo?
- Sim, a banheira, tudo foi limpo. Está impecável.
- Ok, vamos lá.
 
Na cena seguinte, os dois na cama, ele tenta beijá-la e recomeçar as preliminares para uma nova transa. Pergunta se estava tudo bem, se ela não havia se arrependido. Elaine diz que estava tudo bem, que não havia arrependimento algum, mas acaba repelindo a investida. Mas, se estava tudo bem, por que não transar novamente? Então, a racionalidade surge em apoio da vida sexual da protagonista que, honestamente, diz que gostaria de ajudá-lo, mas, infelizmente, não pode se dar ao luxo de “desperdiçar duas esponjas” com o mesmo cara.
 
Passados praticamente um quarto de século das aventuras afetivo-sexuais de Elaine, em pleno 2019, eis que um deputado federal do Rio de Janeiro resolve apresentar um Projeto de Lei proibindo que médicos prescrevam métodos contraceptivos, classificados por ele como “microabortivos”. O veto descrito valeria também para o comércio, propaganda, distribuição ou a doação da chamada “pílula do dia seguinte” e do DIU (Dispositivo Intrauterino), cabendo às autoridades policiais a apreensão e destruição de todo e qualquer material que viole a Lei, e mesmo a interdição do estabelecimento industrial ou comercial que reiteradamente a descumpra. No texto, o deputado afirma que o objetivo é “fazer valer, na prática, a inviolabilidade do direito à vida assegurada pela Constituição Federal” e “proteger a vida da mulher”. Dias depois, diante da avalanche de críticas, o deputado achou por bem retirá-lo da pauta legislativa, momentaneamente.
 
Embora facilmente desmentida pela medicina, a tese de que métodos contraceptivos, como a “pílula do dia seguinte” e o DIU, são “microabortivos” ganham legitimidade e ares de autoridade científica num contexto marcado pela submissão da realidade dos fatos à realidade paralela construída em cima da “pós-verdade”, um mundo onde a verdade ancorada nos fatos é substituída por mentiras – as famosas “fake news” - para falsificar a própria realidade. No mundo da pós-verdade, as mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzi-la, como é o caso do Projeto de Lei abortado – ironia das ironias.
 
O desserviço prestado por este tipo de iniciativa é incomensurável. A “pílula do dia seguinte”, por exemplo, é um contraceptivo de emergência que deve ser utilizado somente em último caso, dentre os quais, estupros. Ao desprezar as mulheres, negando-lhes o acesso ao medicamento, o poder público lhes violenta uma segunda vez, obrigando-as a levar adiante uma gravidez indesejada fruto de um crime. O mesmo desprezo pela saúde física e emocional de quem teve seu corpo invadido sem permissão está no bojo da “bolsa-estupro” - formalmente conhecida como Estatuto do Nascituro - que tramita na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (!) e prevê o pagamento de pagamento de pensão alimentícia pelo estuprador, quando conhecido, obrigando que a violentada se vincule, ainda que virtualmente, ad eternitatem, com o criminoso. É brincadeira de péssimo gosto vincular a proibição do uso de medicamentos contraceptivos em caso de estupro à proteção da vida da mulher, como pretende fazer crer o Projeto de Lei.
 
Esta deliberada campanha de desinformação está a serviço de um projeto de poder ancorado numa visão de mundo religiosa, patriarcal e machista que reverbera em parcelas significativas da sociedade brasileira. É ela que norteia a atuação de boa parte de políticos eleitos nas últimas eleições, como a deputada estadual do Ceará que afirmou, orgulhosa, que seu mandato está nas mãos do marido e entende “a submissão feminina como a coisa mais linda e formidável dentro do casamento. A Igreja é submissa a Jesus assim como a mulher é submissa ao marido”. É a mesma lógica que relega a mulher ao espaço privado, da casa, porque mulher não serve para a política, que é, por natureza, uma atividade exercida no espaço público e o espaço público é interditado à fragilidade do sexo feminino. 
 
A tentativa de controle e submissão dos corpos e mentes femininos também ajudam a entender, por um lado, o estardalhaço e a saraivada de críticas recebidas pela deputada estadual que exibia, na posse do mandato, um decote revelador de seus fartos seios - sem dúvida alguma uma sem-vergonhice típica de depravadas sexuais, diriam os poetas - e, por outro, comentários jocosos e bem-humorados que atestariam a virilidade do deputado que, portando um cafonérrimo chapéu de caubói, manteve sua esposa no colo, literalmente, durante a cerimônia – o cara é comedor, ele que manda no pedaço, diriam também os poetas.
 
Fragilidade e virilidade, azul e rosa, submissão e empoderamento.
 
Elaine ou Damares?

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