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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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Narcoterrorismo e a nova lei de segurança nacional

Sob o verniz da moral e da ordem, o que se vê é a expansão de um império de desrazão

Policiais na zona norte do Rio executam chacina (Foto: Reuters)

De Washington a Buenos Aires, passando pelo Rio de Janeiro, a extrema-direita constrói um léxico comum que transforma o crime em guerra, a polícia em exército e a política em cruzada. “Narcoterroristas”, “inimigos internos”, “guerra espiritual”: as palavras voltam a ser armas. E o resultado, como se viu nesta terça-feira histórica e macabra de 28 de outubro no Rio de Janeiro, é sangue — muito sangue, lágrimas, tortura e morte.

O Rio como laboratório da retórica do ódio

O New York Times publicou nesta semana uma reportagem estarrecedora sobre a megaoperação policial — a mais letal da história do Rio de Janeiro — que deixou pelo menos 113 mortos (algumas fontes falam em mais de 140). 

O jornal norte-americano destacou que a ação ocorreu dias após o senador Flávio Bolsonaro ter escrito, em inglês, nas redes sociais, uma mensagem ao secretário da Guerra dos Estados Unidos, Pete Hegseth, pedindo que ele viesse ao Brasil bombardear barcos de traficantes na Baía de Guanabara, como Trump está fazendo na Venzuela. 

O NYT relacionou o pedido de Flávio à Operação Contenção autorizada e comandada por Cláudio Castro, do mesmo partido do senador, a esse clima de cruzada internacional contra o “narcoterrorismo”. 

O governador do Rio de Janeiro, o cantor gospel Cláudio Bomfim de Castro e Silva, por sua vez, descreveu os mortos da chacina que ele comandou como “narcoterroristas”, expressão que ecoa diretamente o vocabulário usado por Donald Trump para justificar ações militares contra grupos de "narcoterroristas" no Caribe e na América Latina.

O “narcoterrorismo” como senha ideológica global

A palavra não é casual. “Narcoterrorista” é o novo código moral da ultradireita internacional — um termo que funde segurança, religião e geopolítica numa só retórica de guerra. Nos Estados Unidos, Trump a utiliza para dar aparência de legalidade a operações extraterritoriais e autorizar o uso de forças armadas contra países latino-americanos sob o pretexto de “combater o tráfico”. 

Na Argentina, o presidente Javier Milei também a incorporou, associando traficantes, movimentos sociais e adversários políticos a “organizações narcoterroristas” ou “forças do mal”. No Brasil, Cláudio Castro e Flávio Bolsonaro repetem o padrão e tentam legitimar chacinas policiais em nome de uma guerra santa contra "narcoterroristas". 

Em nome dessa guerra, Castro comemora — como se fosse uma vitória espetacular do Flamengo — o "sucesso" do massacre de mais de 140 brasileiros que moram nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro, executados pela Polícia Militar que está sob seu comando. 

Aplausos para a luta contra o "narcoterrorismo"

Castro demonstra estar feliz com o resultado do seu trabalho. Vários deputados do mesmo partido (PL) e governadores de partidos de direita, também, aplaudirem a ação contra o "Narcoterrorismo." Afinal, eles também entendem que os moradores das favelas e das periferias são todos bandidos. E "bandido bom é bandido morto", como dizem e repetem os bolsonaristas fiéis, ou não, a Jair Bolsonaro — condenado a 27 anos de prisão, entre outros crimes, por planejar matar o presidente Lula, o vice Alkmin e o ministro Alexandre de Moraes. 

A convergência do governador Cláudio Castro com Trump, Milei e a extrema-direita brasileira não é coincidência. Trata-se de um projeto transnacional de militarização da política, em que a linguagem da segurança serve para encobrir agendas de repressão social, desinformação e controle. 

“Narcoterrorista”, nessa lógica, não designa quem trafica drogas, mas qualquer um que resista ao autoritarismo. É a ordem, ou a desordem, do "L'état, c'est moi" — a histórica frase atribuída ao rei Luís XIV da França — que defende a tirania e a falta de responsabilidade do governante perante os governados. 

Da política à insanidade diplomática

O uso sincronizado das expressões — “narcoterrorista”, “inimigo interno”, “guerra espiritual” — revela um fenômeno que poderíamos chamar de diplomacia da insanidade: a exportação e importação mútua de delírios políticos entre governos de extrema-direita. 

Trump lança o modelo discursivo e militar; Milei o tropicaliza com sua retórica apocalíptica; e, no Brasil, os herdeiros da extrema-direita bolsonarista o adaptam ao contexto das favelas e periferias, transformando o país em campo de teste de uma nova teologia da guerra. 

Essa diplomacia não é conduzida por embaixadores, mas por algoritmos, pastores e, sobretudo, por policiais e parte das forças armadas. Ela se alimenta de vídeos, memes e discursos inflamados que circulam entre Washington, Buenos Aires e Brasília, todos unidos pela mesma fé. A de que a violência é virtude e a loucura, método.

Quando as palavras matam

A matança do dia 28 de outubro, no Rio, não é apenas um caso de segurança pública. É o efeito concreto de uma ideologia importada. Quando o chefe de governo chama o inimigo de “narcoterrorista”, autoriza simbolicamente o extermínio.

Quando um senador pede que os Estados Unidos venham bombardear os narcotraficantes na Baía de Guanabara, legitima a submissão. 

Quando a imprensa nacional e internacional começa a associar esses gestos — como fez o New York Times —, advete que se desenha algo ainda mais perigoso: a naturalização global da barbárie. 

Segurança nacional vira narcoterrorismo

Sob o verniz da moral e da ordem, o que se vê é a expansão de um império de desrazão, em que cada favela, cada comunidade periférica é tratada como território inimigo, e cada morto, como estatística patriótica. Tudo somado em nome da guerra contra o "narcoterrorismo".

O pretexto utilizado para o golpe de 2016, ressalta o professor João Ricardo Dornelles, contra a Presidenta Dilma Rousseff e para a prisão do Presidente Lula, em 2018, foi a chamada “luta contra a corrupção”. O mesmo ocorreu pela América Latina toda. O imperialismo agora usa como pretexto a “luta contra o narcoterrorismo”. 

A diplomacia da insanidade é, portanto, a política exterior da loucura. O porrete do Big Stick cada vez aumenta mais, ofuscando a primeira parte da lição que Roosevelt ensinou: "aja com diplomacia, mas não esqueça de usar o porrete." Se fosse hoje, poderia acrescentar outros elementos: bala, porrada, bomba, sangue, lágrimas, tortura e morte. 

Ao incorporar o termo “narcoterrorista”, a extrema-direita latino-americana não está combatendo o crime — está reeditando a doutrina da segurança nacional, agora travestida de “guerra aos narcotraficantes".

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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