O bolsonarismo e o vazio das ruas
O bolsonarismo é como uma fogueira de papel: arde rápido, mas se apaga sem lastro
I
O que esse episódio revela, e que se conecta com o argumento a seguir, é o seguinte ponto de convergência: a narrativa — seja histórica ou ficcional — está enraizada no tempo e nas transformações que nele se sucedem. O elo entre ambas encontra ainda um terceiro vetor: a fé. Um texto gerado por inteligência artificial é, por definição, um texto desprovido de fé, de intencionalidade, de pathos. Há nele algo que o distancia de maneira radical da escritura humana.
Seria possível expandir esse debate, embora ele parta aqui apenas como uma hipótese preliminar — talvez incômoda apenas a engenheiros e especialistas em computação. No entanto, a intenção neste ensaio é outra: estabelecer um paralelo com um fenômeno análogo. De uma perspectiva epistemológica, o que distingue a militância de esquerda da mobilização da extrema-direita? A proposta é que se trata de uma distinção de mesma natureza daquela evocada acima. A ausência de intenção, de fé genuína, de paixão transformadora é o que torna o bolsonarismo um produto análogo ao de uma inteligência artificial.
Basta uma breve observação: no lugar de intenções, os bolsonaristas exibem apenas reações. No lugar de fé, uma fé demagógica. No lugar de paixão, uma raiva difusa e uma histeria coletiva. Eis a premissa fundamental do argumento que se seguirá.
II
Desde que foi compelido ao uso de tornozeleira eletrônica por determinação do Supremo Tribunal Federal, uma pergunta ressurge: qual é, afinal, o tamanho real do bolsonarismo? Terá sua base apoio suficiente para tomar as ruas em defesa daquele que, há não muito tempo, era saudado por gritos de um fanatismo delirante como “mito” e “messias”? Esta é a aposta de seus aliados, que buscam respostas às medidas impostas ao que chamam de seu “líder maior”.
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em seu perfil na rede X, convocou uma reação popular imediata, escrevendo: “Vamos pra rua já, o Brasil vai parar!”. Mas o episódio revela muito mais: é uma oportunidade para compreendermos como, desde a eleição de Donald Trump em 2016, a engenharia algorítmica passou a influenciar decisivamente o jogo político global — e, no caso brasileiro, culminou na ascensão de Jair Bolsonaro em 2018.
É necessário perguntar: o mesmo Brasil que elegeu Bolsonaro é o mesmo que poderia sustentar seu retorno ao poder? Para responder, devemos considerar os múltiplos fatores que, juntos, tornaram possível sua eleição. Entre eles: o golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff; a prisão política de Luiz Inácio Lula da Silva, fruto de um escandaloso lawfare conduzido pela Lava Jato, sob a liderança dos procuradores Sérgio Moro e Deltan Dallagnol; o vergonhoso alinhamento da grande mídia, que atuou como extensão ideológica da elite econômica, demonizando o PT e seus representantes por meio de uma campanha ritualística de desinformação.
Na outra ponta, as redes sociais, impulsionadas por algoritmos e estratégias digitais, construíram artificialmente a imagem de um “salvador da pátria” — personagem cuja figura foi legitimada por uma parcela significativa do eleitorado evangélico, como mostra o novo documentário “O Apocalipse nos Trópicos” (Dir. Petra Costa, 2024). Esse “messias” não surgiu espontaneamente: foi moldado a partir da figura de um deputado que, ao longo de décadas, cultivou um discurso de ódio contra a esquerda e a democracia, exaltando torturadores da ditadura militar (1964–1985).
O bolsonarismo, assim, é o produto final de uma engenharia discursiva artificial. Ele encarna simultaneamente diversos "ismos": racismo, sexismo, classismo. É expressão de um complexo de inferioridade travestido de arrogância colonial, de um anti-intelectualismo visceral, do culto à banalidade e ao consumo. Despreza o saber, demoniza a educação, rechaça a ciência. É, em última instância, a expressão mais aguda do colonialismo contemporâneo — não aquele das caravelas, mas o que se apoia no neoliberalismo predatório e no colonialismo de dados.
III
Apenas uma leitura que considere essa complexidade de fatores permite circunscrever o bolsonarismo enquanto fenômeno. Ele não emerge de uma construção histórica autêntica, mas de uma artificialidade digital que mimetiza a mobilização popular. Sua substância simbólica não provém de luta ou militância, mas de resíduos do projeto colonial que sempre privilegiou elites econômicas e desprezou os de baixo.
Diferente dos movimentos populares enraizados na história e nas contradições reais da vida social, o bolsonarismo carece de fé — não a fé religiosa, mas aquela que se enlaça com a ideia de transformação, de aposta no improvável. A fé como força dos oprimidos.
Nesse sentido, deve-se levar a sério a hipótese enunciada por Lula, no documentário de Petra Costa:
"Tenho uma tese de que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião. Pode ser que algum comunista ortodoxo não aceite, mas você não pode negar os valores que as pessoas acreditam."
Paradoxalmente, foi pela dimensão religiosa — e pela manipulação de sua linguagem — que Bolsonaro ascendeu à presidência, arrastando o país a uma espiral de retrocessos: o retorno da fome, o negacionismo científico, o descaso diante da pandemia, a devastação ambiental sob a justificativa de "passar a boiada", o genocídio dos povos originários (como o caso dramático dos Yanomami) e o colapso do Estado de bem-estar social.
A falta de densidade histórica do bolsonarismo revela sua essência: um fenômeno de superfície. Tal como um texto gerado por IA, é destituído de carne, tempo e contradição. Alimenta-se da viralização, das engrenagens das redes, da lógica memética. Sem isso, torna-se frágil, inconsistente, inflado como um corpo moldado por filtros do TikTok ou anabolizantes de imagem: musculoso apenas na aparência.
IV
A sociedade digital não opera apenas como mecanismo de vigilância e extração de dados. Ela se tornou também o novo campo de batalha política, orientando eleições e forjando mitologias populistas. Nesse contexto, o bolsonarismo é como uma fogueira de papel: arde rápido, mas se apaga sem lastro.
Falta-lhe a densidade de uma lenha de verdade: a resistência de uma aroeira, a solidez de um jatobá, a profundidade de um angico — árvores que levam décadas para se tornarem combustíveis legítimos. O bolsonarismo, como fenômeno atemporal, é incapaz de reconhecer o curso da história ou compreender suas dialéticas. Vive do presente contínuo da viralização.
Eis por que ele não tomará as ruas após o episódio da tornozeleira eletrônica. No máximo, assistiremos a fagulhas localizadas, ruídos efêmeros. Nada, porém, que impeça o Brasil de retomar seu caminho de reconstrução.
Não, senhor deputado, o Brasil não deve parar. Quem precisa ser contido, por meios legais e democráticos, é aquele que mais o maltratou durante os anos de necrogoverno — um período marcado não pela governança da vida, mas pela administração deliberada da morte.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




