O Brasil desnuda no Rio a anatomia de um Estado falido
A bala fala mais alto que a Constituição — e o medo, mais alto que o som das bombas, granadas, fuzis e sirenes
O Rio de Janeiro amanheceu sitiado.
Pelas ruas e vielas da Penha e do Alemão, o Estado desceu em peso com 2.500 agentes, helicópteros, blindados e drones. O saldo até agora é devastador: 134 mortos, entre eles 4 policiais e um delegado, 9 feridos das forças de segurança, 75 fuzis apreendidos e 81 prisões. A guerra urbana ganhou rosto, cheiro e ruído. E, como nas tragédias humanas, ninguém sabe ao certo quem são os inimigos — e quem, de fato, é o povo a ser protegido.
Desta vez, os criminosos lançaram bombas e granadas por drones. O cenário não lembrava uma operação policial, mas uma ofensiva militar. A paisagem — vielas de concreto, fumaça preta, corpos estendidos no chão — era a mesma que se vê em Gaza, onde o bombardeio cotidiano destrói o sentido da palavra “vida”.
Em ambos os lugares, o Estado responde com força desproporcional, e a população se encolhe entre o dever de sobreviver e o direito de existir. No Rio, como em Gaza, o barulho das explosões é seguido por um silêncio que não é paz — é o intervalo entre duas violências.
A guerra sem fronteiras
Os números da operação carioca soam como boletim de guerra: dezenas de mortos em poucas horas, armas pesadas, drones lançando morte do céu.
Mas há algo mais profundo — e mais devastador — que os números não mostram. É o colapso da confiança entre cidadãos e instituições.
No Rio, cada sirene é uma sentença antecipada.
Cada helicóptero, um presságio.
Cada esquina, uma trincheira improvisada.
A diferença entre a guerra declarada do Oriente Médio e a guerra disfarçada do Brasil é apenas semântica. Gaza é o território da ocupação e da retaliação. O Rio é o território da omissão e da ausência de Estado.
Lá, há drones israelenses.
Aqui, há drones improvisados pelo crime.
Lá, as bombas caem em nome da segurança nacional.
Aqui, em nome da “ordem pública”.
Nos dois, a vida civil é a que mais sangra.
Blindagem como modo de vida
O Rio virou um campo minado emocional.
As famílias aprenderam a medir o tempo pela duração dos tiroteios, e não mais pelo ponteiro dos relógios.
O aço virou segunda pele: quase 400 mil carros blindados circulam pelo país — 45 mil só em 2024, segundo a Associação Brasileira de Blindagem.
Não se trata de luxo. É medo com certificado de fábrica.
A sociedade brasileira naturalizou o inaceitável.
Os condomínios são fortalezas verticais; as ruas, arenas de fuga.
A política virou coadjuvante da barbárie.
Enquanto isso, o Congresso debate a PEC 18/2025, que tenta transformar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) em política de Estado. Mas a tramitação emperra na burocracia e nas barganhas partidárias.
A tragédia do Alemão é, também, a metáfora de um país que não sabe mais distinguir o combate ao crime do combate ao pobre.
A ausência como política
Cada morador da Penha ou de Gaza conhece de cor o som de um disparo.
Mas talvez o que mais doa seja o som da ausência: ausência de Estado, de justiça, de coordenação.
No Brasil, as forças de segurança agem como exércitos autônomos.
Não há integração de dados, nem protocolos compartilhados, nem transparência no uso da força.
A cada operação, repete-se o roteiro: helicópteros, mortos, notas oficiais, silêncio.
É essa descoordenação que a PEC 18/2025 tenta enfrentar — e que a covardia política insiste em perpetuar.
Porque enfrentar o crime sem enfrentar a desigualdade é fabricar tragédias em série.
Porque chamar de “efeito colateral” o corpo de um adolescente é renunciar à civilização.
Gaza é aqui
Ao comparar o Rio a Gaza, não se pretende diluir a dor de nenhum dos dois povos, mas reconhecer a semelhança das feridas.
Ambos os lugares vivem sob fogo cruzado, sob o olhar distante de autoridades que chamam de “dano colateral” aquilo que é, na essência, vida perdida.
Ambos se tornaram laboratórios da desumanização. A diferença é que, em Gaza, o inimigo tem bandeira.
No Rio, o inimigo veste farda, terno, toga — e também bermuda e chinelo.
O Brasil precisa decidir se quer continuar assistindo a seus próprios bombardeios diários transmitidos em tempo real.Ou se, enfim, reconhece que a guerra não é o único caminho.
Enquanto a guerra de Gaza segue estampada nas manchetes internacionais, a guerra do Rio se repete sem tradução. Mas ambas nascem do mesmo ventre: o fracasso da política e o desprezo pela vida comum.
Nenhuma sociedade pode se considerar civilizada quando o resultado de uma operação policial se assemelha a um relatório de guerra. Sessenta e quatro mortos, entre eles inocentes, não representam êxito tático, mas um retumbante fracasso de Estado. São o retrato da incompetência estratégica, da ausência de comando unificado e da renúncia à inteligência como instrumento de ação pública. Uma operação que termina assim não é segurança: é barbárie com crachá oficial.
Insisto: a PEC 18/2025 pode ser o início de uma reconstrução institucional — se houver coragem de aprová-la e aplicá-la. Mas, até lá, o que se vê é um Estado que atira primeiro, pensa depois e se acostuma a contabilizar cadáveres como se fossem números de um balanço contábil da violência.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



